Um inseticida para o controle da Doença de Chagas
O trabalho que quero comentar hoje, seguindo a série histórica de artigos do laboratório, é um trabalho de 2016. Ele foi publicado na revista Biomed Research International, e é resultado de uma colaboração entre o nosso laboratório e um grupo de pesquisa da Universidade Federal Fluminense que colabora conosco há muitos anos, dos professores Marcelo Gonzalez e Cícero Brasileiro.
Nesse trabalho estudamos os efeitos do inseticida Triflumuron no barbeiro Rhodnius prolixus. O interesse no estudo do barbeiro é porque ele é transmissor do Trypanosoma cruzi, parasito causador da doença de Chagas. Além disso, essa espécie de barbeiro é usada como modelo em fisiologia de insetos, já que é a espécie de barbeiros mais fácil de criar em laboratório. Assim sendo, estudar o efeito e a ação de novos inseticidas em barbeiros tem grande interesse médico, pois assim podemos avaliar a possibilidade de seu uso no controle desses insetos vetores.
O Triflumuron é um inseticida que faz parte do grupo de compostos que ficou conhecido como reguladores do crescimento de insetos, em inglês, Insect Growth Regulators (IGRs). Um dos modos de ação descritos para essa classe de compostos é a inibição da síntese de quitina. A quitina é um dos principais componentes do exo-esqueleto dos insetos. Os insetos, durante o seu desenvolvimento, rompem o exo-esqueleto para mudar de estágio. Com a ruptura do exo esqueleto, o inseto engole ar e se expande. Logo após, o novo exoesqueleto, que no momento da troca é molinho e claro, vai se escurecendo e endurecendo, um processo que leva algumas horas. É um fenômeno que os especialistas chamam de muda, ou ecdise. Todos estão familiarizados com aquela famosa barata branca que aparece raramente na casa de alguém. É uma barata que acabou de trocar de casca, e que estava com o seu exo- esqueleto novo, numa fase crítica do seu crescimento que é a troca de estágios .
O exo-esqueleto de insetos cobre toda a superfície do seu corpo, incluindo as patas, as asas, o início e o fim do intestino, e todo o seu sistema respiratório, que é composto de traquéias que penetram no corpo do inseto e que são extremamente ramificadas. Além desses intensos momentos de síntese de um novo exo-esqueleto que ocorrem durante a muda, o exo-esqueleto de um inseto está permanentemente sendo modificado, renovado e remodelado, mesmo que sutilmente em um nível microscópico. Dessa maneira, compostos que atuam no metabolismo dessa estrutura, especialmente os inibidores de síntese de quitina como o Triflumuron, costumam ter um efeito devastador sobre esses organismos.
A primeira motivação para o nosso estudo, portanto, foi descrever os efeitos desse tipo de inseticida em um organismo sobre o qual ele ainda não havia sido testado. Além disso, também tínhamos uma curiosidade conceitual, que era observar os efeitos desse inseticida, que é classicamente descrito como um inibidor da muda, em insetos adultos. Isso é interessante porque insetos adultos não realizam mais a troca de exo-esqueleto, e, portanto, talvez fossem menos suscetíveis aos efeitos desse tipo de composto.
Apesar disso, observamos uma grande mortalidade nos insetos adultos tratados com Triflumuron. Pudemos observar os efeitos desse inseticida de diferentes maneiras: administração oral, administração tópica e exposição por contato. Na administração oral o inseticida é adicionado ao sangue que usamos para alimentar os insetos. Isso é feito através alimentadores artificiais, que são comumente utilizados para alimentar barbeiros e mosquitos em laboratório. Embora essa via de administração não reproduza o que acontece em campo, ela é interessante para entender as vias de ação dos inseticidas e os efeitos que esses compostos podem ter no metabolismo de insetos sugadores de sangue. Outra via utilizada, a administração tópica, consiste em colocar uma pequena gotinha de inseticida nas costas do inseto. Como o inseticida está dissolvido em um solvente que consegue atravessar a cutícula, rapidamente ele penetra na circulação do inseto, sendo assim observados seus efeitos. A administração por contato é a que mais se aproxima do que ocorre no campo. Nesses experimentos, nós borrifamos o inseticida em um pedaço de papel de filtro, com uma dose definida de acordo com área de exposição. Depois disso, os insetos são colocados no recipiente e podem andar sobre o papel. Como o inseticida consegue atravessar o exo-esqueleto, o contato das patas com o papel é suficiente para que o composto penetre na circulação do organismo.
Nós pudemos observar a eficácia do inseticida sobre barbeiros utilizando os três modos de exposição, o que sugere que esse tipo de composto pode ser utilizado para o controle desses insetos. Além disso, ficamos surpresos com os altos níveis de mortalidade observados nos adultos, já que, como comentado acima, barbeiros adultos não realizam mais as trocas de exo-esqueleto. Dessa maneira decidimos investigar qual seria o mecanismo de ação do inseticida que estava causando essa morte nos adultos.
Nós iniciamos esses estudos tentando ver se o inseticida tinha um efeito sobre a produção e postura de ovos pelas fêmeas. Isso é de certa forma esperado, porque a casca dos ovos possui uma quantidade considerável de quitina. Dessa maneira, inibindo a síntese de quitina nós estaríamos atrapalhando a produção de ovos. De fato, observamos que fêmeas tratadas com Triflumuron colocavam menos ovos, e além disso, os ovos não se desenvolviam adequadamente dentro do seus ovários.
Além desse desbalanço na função reprodutiva dos insetos, observamos que os insetos tratados com inseticida não conseguem digerir adequadamente o sangue. Durante a alimentação sanguínea, um barbeiro aumenta de peso muitas vezes. Alguns barbeiros ingerem 10 vezes o seu peso em quantidade de sangue, e ao longo dos dias seguintes o barbeiro perde esse peso através da excreção de água e absorção dos nutrientes. Assim sendo, uma medida indireta de boa digestão e boa saúde em barbeiros é a perda de peso ao longo dos dias após ingestão sanguínea. O que nós verificamos é que barbeiros tratados com inseticida não conseguem perder peso na mesma taxa de barbeiros normais. Tendo visto isso, nós dissecamos os insetos para observar a sua anatomia interna, e verificamos que o intestino posterior desses insetos estava extremamente dilatado. Como esse é parte do sistema excretor dos insetos, isso indica que eles não estão conseguindo eliminar a água no sangue, ou que eles estão acumulando água durante o seu metabolismo de compostos tóxicos. Ou seja, em outros termos, eles estão intoxicados com o inseticida e não estão conseguindo eliminá-lo.
Um efeito interessante e secundário que observamos tem a ver com a imunidade desses insetos. Uma das funções mais importantes do exo-esqueleto é proteger o inseto contra infecções e invasões de micro-organismos patogênicos. Nós observamos que nos insetos tratados com inseticida o sistema imunológico estava muito mais ativado do que nos insetos normais, o que sinaliza que esses insetos estão tendo que combater muito mais infecções de microorganismos invasores do que o normal. Isso é coerente com o enfraquecimento do seu exo-esqueleto, já que o inseto, tendo a síntese de quitina inibida, não consegue repor a quitina que é normalmente degradada durante o processo de remodelamento.
Assim sendo, nesse trabalho nós não só mostramos que o inseticida pode ser usado para controle da transmissão de doença de Chagas, como também elucidamos alguns aspectos do seu funcionamento, o que pode colaborar no desenvolvimento de novos inseticidas mais potentes e com ação melhorada. O artigo pode ser acessado livremente e de graça nesse link. Espero que tenham gostado e até a próxima!
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