O Universal e a Fé
Estão abertas as inscrições para o edital de apoio pesquisa mais importante do Brasil. É o Edital Universal do CNPq. Esse edital e particularmente importante porque praticamente todos os cientistas do país podem concorrer, disputando diferentes níveis de financiamento. Em geral, os editais são restritos pelo currículo dos pesquisadores ou por razões programáticas. Neste sentido, o Universal do CNPq é o edital mais aberto das agências brasileiras.
Eu tenho impressão de que o público em geral não sabe como funciona atividade científica no dia dia. É importante deixar claro que as universidades e os institutos de pesquisa oferecem, quando oferecem, apenas o espaço e as despesas condomíniais básicas, como a água, luz e telefone. Todo o resto dos insumos, equipamentos, e pessoal qualificado é fornecido pelo pesquisador. Um dos princípios que regem essa lógica é que é impossível para as universidades e institutos suprir todos os pesquisadores na suas diferentes especificidades. Dessa forma, cada pesquisador tem liberdade de escolha de seus temas de pesquisa, e aplica com a maior eficiência possível os recursos da sociedade, dado o seu conhecimento único nos temas de pesquisa.
Contudo, isso criar uma lógica cruel para o pesquisador. O cientista fica numa situação híbrida entre ser um assalariado, condição na qual o empregador deveria fornecer seus instrumentos de trabalho, e profissional liberal, condição na qual tem autonomia para obtenção e administração desses recursos. Qualquer comparação com essas duas situações é injusta, e a sociedade não percebe armadilha na qual o pesquisador se encontra. Por exemplo, outros profissionais liberais compram os seus equipamentos de trabalho e todo mundo acha isso muito natural. Dentistas, veterinários, advogados, médicos, cada um é responsável pela compra do seu equipamento e administração de seus recursos. O cientista também estaria na mesma condição, com a diferença gritante de que ele não aufere lucro sobre o seu trabalho. Portanto se o cientista usar o seu salário, o seu dinheiro, para compra dos insumos de pesquisa, será um investimento sem nenhum retorno financeiro para si. Há uma discussão enorme se cientistas deveriam ser mais empreendedores, mas a cultura organizacional brasileira é radicalmente contra essa possibilidade.
Outra questão sobre a qual a maioria das pessoas não têm consciência é o custo da atividade científica. Embora do ponto de vista do investimento a ciência seja o melhor para a sociedade, em termos de custo e benefício, a atividade científica é um fazer essencialmente caro na maior parte das vezes. Os reagentes que são utilizados devem ter a maior pureza possível, e muitas vezes custam milhares de reais por miligrama, valor muito superior ao da cocaína, ouro, ou até mesmo diamantes. Dessa maneira, a obtenção de recursos por meio de editais do governo é única saída que o pesquisador tem para dispor de recursos necessários para o seu trabalho.
Dessa
forma, um dos afazeres do cientista é escrever projetos que são submetidos à
apreciação das agências de fomento. Ultimamente esta tem sido uma tarefa
bastante contraditória, já que as agências de fomento não tem recursos e não
pagam os projetos que supostamente financiam. Vale mencionar que o número de
editais abertos caiu drasticamente nos últimos anos, deixando a maior parte dos
pesquisadores brasileiros sem nenhuma opção. Em relação à submissão de
projetos, observamos de maneira geral duas atitudes no meio científico. A
primeira, bastante racional, é a de economizar tempo, e simplesmente parar de
escrever projetos para agências que não tem condição financeira de aprova-los e
paga-los. Isso é extremamente danoso para a ciência, porque é no momento de
escrever projetos que se colocam e organizar as idéias novas no papel, que se
faz um planejamento do trabalho para os próximos anos, que se medem as
possibilidades e expectativas.
Outra corrente de pensamento sustenta que os projetos devem ser escritos e
submetidos, independentemente da situação e do cenário. A submissão e aprovação
de projetos, serviria não só para sinalizar a demanda científica existente para
o governo, mas também serviria como forma de pressão para financiamento da
pesquisa, já que projetos aprovados são um tipo de dívida, ou passivo
financeiro, do Estado para com os cientistas. Essa lógica, mais política, faria
sentido se os governantes tivessem um mínimo de conhecimento e de
responsabilidade. Para dar um exemplo, a FAPERJ, na figura de nosso governador,
vulgo Pezão, o caipira caloteiro, não paga projetos individuais desde 2015. O
CNPq, a maior agência federal de fomento à pesquisa, ainda está pagando os
projetos desse mesmo ano de 2015. Por mais que se levante o argumento da crise,
esses projetos estavam previstos no orçamento, e o seu não pagamento reflete
apenas uma decisão discricionária dos governantes atuais. Imagine o leitor,
como seria a nomeação e classificação de alguém que não paga suas contas por
três anos. O que aconteceria com o governo se ele deixasse de pagar os seus
compromissos para outros agentes, como bancos, empreiteiras, servidores do
Judiciário? Estamos claramente diante de uma situação aonde se utilizam dois
pesos e duas medidas, que reflete os valores e as prioridades de nossos
mandatários.
Eu não tenho dúvidas de que o CNPq receberá milhares de propostas de
projetos de pesquisa, todos de altíssimo nível, interessantes, relevantes, com
reais possibilidades de melhoria das condições de vida do povo brasileiro.
Contudo, considerando o cenário dos últimos três anos, não acredito que esses
projetos serão pagos. Toda a comunidade brasileira científica realizará esse
intenso exercício de discussão de prioridades e redação de perspectivas, apenas
com um fim documental. De todos os que vemos sendo obrigados a realizar nos
últimos anos, esse apenas será mais um exercício de fé.
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