As proteases do barbeiro Rhodnius prolixus, transmissor da Doença de Chagas!

Hoje eu quero comentar uma publicação do nosso grupo que é relativamente recente, e que acredito que terá desdobramentos. Na verdade foi um trabalho que começou durante a anotação do genoma do barbeiro Rhodnus prolixus. Barbeiros são insetos da ordem Hemiptera, que inclui percevejos, cigarras e pulgões. Eles tem uma grande importância médica, por que são sugadores de sangue e transmissores do parasito Trypanosoma cruzi, que é causador da doença de Chagas.

A doença de Chagas é endêmica da América Latina e ainda afeta milhões de pessoas. Estimativas recentes apontam que há cerca de 6 a 7 milhões de pessoas infectadas com o parasito, a maioria dos casos ocorrendo na região amazônica. Contudo, a preocupação com a disseminação global dessa doença vem crescendo nos últimos anos, em função de dois fatores principais. O primeiro é o movimento de populações humanas ao redor do globo, o que faz com que pessoas infectadas com o parasito passem a fazer parte da população de países que anteriormente não tinham o registro da doença. Como a Doença de Chagas pode ser transmitida por transfusão de sangue, transplante de órgaos ou da mãe para os filhos, os sistemas de saúde devem estar preparados para monitorar a presença do parasito. E a maioria dos países não faz isso de forma rotineira (nem o Brasil!). Outro fator de preocupação é o aquecimento global. Com o aumento da temperatura, a distribuição geográfica dos barbeiros tende a se ampliar de regiões tropicais e semi-tropicais para regiões temperadas. Dessa forma, existe a possibilidade real de implantação do ciclo da doença em regiões onde anteriormente ele não existia.

Assim sendo, todo conhecimento que se possa acrescentar a respeito de espécies transmissoras é de fundamental importância. Durante a anotação do genoma do Rhodnius, nosso grupo ficou responsável pela anotação e classificação de algumas enzimas digestivas, como carboidrases e proteases. Num primeiro momento, nós rastreamos todos os genes de proteases do inseto, utilizando os padrões de sequências de aminoácidos já conhecidos da literatura. Proteases são classificadas em grupos de acordo com a suas sequências peptídicas, e essa classificação pode ser encontrada no banco de dados público MEROPS.

Nós encontramos mais de 700 genes de proteases, pertencentes a diferentes famílias e com diferentes mecanismos. Num segundo momento, nós nos perguntamos se a composição ou conjunto de proteases desse inseto seria diferente dos que são conhecidos em outros insetos, de outros grupos taxonômicos ou com outros hábitos alimentares. Para isso levantamos a informação do conjunto de proteases das outras 19 espécies de insetos cujos genomas já haviam sido depositados e anotados na base de dados. Após isso, fizemos comparações estatísticas entre grupos taxonômicos, entre insetos com diferentes tipos de alimentação (sugadores de sangue versus outros tipos de alimentação), e do Rhodnius prolixus contra todos os outros insetos.

Dessa forma, nós buscarmos proteases que fossem especificamente ou mais presentes em insetos sugadores de sangue, ou na ordem dos Hemípteros, ou que fossem específicas do barbeiro Rhodnius prolixus. Isso é interessante porque durante a sua evolução, os barbeiros se adaptaram a ingerir enormes quantidades de sangue, um alimento que é especialmente rico em proteínas. Assim sendo, sabe-se que a digestão de proteínas nesses insetos é extremamente eficiente e é um aspecto do seu metabolismo que é fundamental para o seu desenvolvimento. Portanto, a digestão de proteínas é estratégica para o desenvolvimento de ações de controle do inseto, como a criação de inseticidas ou ferramentas de bloqueio da transmissão de parasitos. Como o inseto é capaz de digerir enormes quantidades de sangue em pouco tempo, ele produz uma grande quantidade de proteases no intestino. Há diferentes mecanismos conhecidos para que um organismo aumente uma atividade enzimática durante a evolução. Observam-se organismos que expressam um determinado gene com maior intensidade, assim como outros que produzem múltiplas cópias de um mesmo gene, para poder produzir aquela proteína com mais eficiência.

Na nossa análise, nós encontramos diferentes famílias de proteases com o número de genes bastante amplificado no barbeiro. Isso sugere que essas proteínas foram importantes na adaptação desse inseto para a digestão do sangue, e que portanto elas são alvos interessantes para bloquear esse processo. Dois grandes grupos de família gênicas chamaram especialmente a nossa atenção. O primeiro é o de famílias aonde foram encontrados múltiplas cópias de genes muito parecidos, mas que estavam presentes em um número menor em outros insetos. Isso sugere que durante a evolução de barbeiros esse genes sofreram duplicação, podendo ter sofrido especialização. Nós verificamos isso na família de aspartico proteases do tipo Catepsina D (família A1) aonde, apesar da presença de cerca de 20 genes muito parecidos, cada protease possui uma configuração diferente no seu sítio ativo, o que sugere o reconhecimento diferencial de substratos proteicos. Isso pode estar relacionado à digestão de diferentes proteínas do sangue, como também ao hábito generalista desse barbeiro, que é capaz de sugar o sangue de diferentes vertebrados, sendo naturalmente exposto a proteínas do sangue com diferentes sequências de aminoácidos.

O outro grupo de enzimas que chamou nossa atenção são enzimas que estavam presentes no barbeiro mas que não tinha nenhum correspondente nos outros insetos. Observando essas sequências mais de perto, percebemos que esse genes eram característicos de bactérias ou de vírus. Aqui vale a ressalva de que, ao se fazer o projeto genoma de um organismo, as preparações de DNA que são utilizadas podem estar contaminadas com micro-organismos associados a ele. Por mais que se tome cuidado, as sequências obtidas podem não fazer parte daquele ser vivo. Para ter certeza de que estávamos trabalhando com genes do inseto, purificamos o DNA do barbeiro e confirmamos a presença desses genes nele, utilizando sondas específicas. Além disso, purificamos o RNA mensageiro do intestino do inseto, para saber se esses genes estavam sendo expressos no intestino, para confirmar se eles estariam mesmo relacionados à digestão do sangue. 

De fato, algumas das famílias gênicas que encontramos no nosso rastreamento inicial parecem corresponder a contaminações. Contudo, algumas famílias resistiram ao crivo, e se confirmaram como genes de protease intestinais do barbeiro. O fato de encontrarmos proteases bacterianas ou virais no intestino do barbeiro sugere que esses genes foram transferidos desses microorganismos para o genoma do inseto. A transferência de genes entre micro-organismos e insetos não é uma novidade, tendo sido descrita em diferentes grupos de insetos e em diferentes contextos evolutivos e fisiológicos. Entretanto, é a primeira vez que se descreve a transferência de uma protease digestiva de bactérias para insetos sugadores de sangue. Não sabemos até que ponto isso pode ter ocorrido em outros insetos, pois é a primeira vez que se descreve esse fenômeno.

Um aspecto interessante que vale a pena comentar aqui é que uma dessas proteases foi aparentemente adquirida a partir do vírus da Hepaptite, o que sugere que barbeiros estão em contato com esse vírus há milhões de anos. O papel de insetos sugadores de sangue na transmissão da hepatite é muito controverso, mas alguns estudos sugerem que o vírus é capaz de permanecer no intestino do inseto por muitos dias, o que pode ter sido importante para o sucesso dessa transferência gênica.

Nós agora estamos interessados em estudar as características e o papel fisiológico de alguns genes específicos, mas a descoberta desses alvos particularmente interessantes para estudo não seria possível sem o mapeamento e análise que foi realizado nesse trabalho. Ficam aqui algumas impressões: a primeira é que é possível fazer descobertas científicas relevantes analisando os dados genômicos e transcriptomicos que já existem, sendo necessário fazer um balanço adequado entre aquisição de novos dados e análise dos dados já existentes. Outra percepção é que existe uma falta absoluta de dados de genômicos e transcriptômicos no grupo dos insetos, pois os estudos de sequenciamento de DNA costumam ser voltados para o genoma funcional de seres humanos e outros modelos vertebrados.


O artigo foi publicado na revista Frontiers in Physiology e pode ser acessado AQUI. Nós preparamos um vídeo explicativo que está no YouTube (CLIQUE AQUI). Espero que tenham gostado, se tiverem dúvidas podem colocar nos comentários...Um grande abraço a todos e até a próxima!

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