A digestão de insetos - parte 4

A próxima justificativa que eu quero comentar hoje, que embasa o estudo da digestão de insetos, é o papel importante que esses animais tem na transmissão de patógenos. Insetos são transmissores de inúmeros micro-organismos causadores de doenças, em seres humanos, animais e plantas de importância econômica.

Os exemplos são inúmeros. Apenas no Brasil podemos citar mosquitos que transmitem vírus causadores de doenças graves como febre amarela, dengue, Zika, chikungunya, parasitas causadores de malária, Filariose ou Oncocercose, além de flebótomos que transmitem os parasitas causadores da leishmaniose, e barbeiros que transmitem parasitas causadores da doença de Chagas...

Um ponto em comum entre todos esses agravos é que uma parte importante, para não dizer fundamental, do ciclo de vida do patógeno acontece dentro do intestino do inseto. Por exemplo, o ciclo completo do parasita Trypanosoma cruzi no barbeiro ocorre no tubo digestivo, aonde o parasita se diferencia, se multiplica e desenvolve as suas formas infectivas que são liberadas nas fezes. No caso do flebotomíneo, o ciclo completo da Leishmania no vetor também ocorre no intestino, aonde o parasita se diferencia, se desenvolve e se multiplica em formas infectivas que se acumulam perto da próboscide, sendo transmitidas durante uma nova picada. No caso dos mosquitos, parasitas causadores da malária e vírus causadores de inúmeras doenças se diferenciam no intestino, antes de atravessar a parede gastrointestinal, para que possam ser desenvolver na hemolinfa e migrar para glândula salivar, de onde serão transmitidos durante uma nova picada. Contudo, o intestino não é um mero sítio de passagem, e hoje sabemos que o desenvolvimento desses patógenos depende da sua interação com o pH intestinal, enzimas digestivas, micróbios e interação íntima e específica com estruturas do intestino, como a membrana peritrófica e as células epiteliais.

Embora pareça óbvio que esses patógenos estejam adaptados e obrigados a interagir com as enzimas digestivas, células epiteliais, fatores de lise, micróbios intestinais, entre outras estruturas e fenômenos fisiológicos da digestão dos insetos, sabe-se pouquíssimo a respeito da interação desses microorganismos com o intestino. É bem verdade que o número de grupos que se dedica ao estudo da interação entre micro-organismos e insetos é muito reduzido, se compararmos com a quantidade de pesquisadores que se debruçam sobre os estudos da digestão humana ou de outros animais.

Um caso emblemático de como sabemos pouco a respeito de insetos vetores e de como o seu estudo, apesar de fundamental, é pouco valorizado, é o caso dos barbeiros e do parasita Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas em seres humanos. O genoma humano foi elucidado em 2003, há cerca de 15 anos. Uma série de genomas de parasitas foram elucidados logo após, e o do Trypanosoma cruzi foi publicado no ano de 2005. Apenas mais de 10 anos depois, em 2015, é que um consórcio internacional, com uma grande participação de pesquisadores sulamericanos, conseguiu elucidar e publicar o genoma do barbeiro, no caso a espécie Rhodnius prolixus. Não se trata de um atraso causado por questões técnicas ou metodológicas, mas simplesmente por uma questão de escolha do tema, que envolve questões políticas, sociais e epistemológicas

Outra comparação emblemática é o dos flebotomíneos e Leishmana. O descompasso entre os estudos sobre os parasitas e sobre os insetos é assustador. O estudo dos genomas dos principais flebotomíenos transmissores, Lutzomyia longipalpis e Phlebotomus papatasi, ainda está andamento. O genoma do parasita Leishmania major foi publicado em 2005. Por questões econômicas, sociais e políticas, o estudo de mosquitos sempre é mais avançado. O genoma dos principais mosquitos, Anopheles, Aedes e Culex, foram publicados nos anos 2002, 2007 e 2010.

Estou usando os projetos genoma apenas para ilustrar uma escala de interesse e dedicação sobre o tema. Para os especialistas, é bastante claro que o simples sequênciamentor do genoma, apesar de ser um avanço técnico sensacional, não resolve muita coisa do ponto de vista fisiológico, ou mesmo em termos de entendimento da interação com patógeno os desenvolvimento de estratégias de controle. O genoma é a base para estudos que são bastante difíceis de conduzir, laboriosos, e que dependem de especialistas e de um instrumental o que é cada vez mais raro no Brasil e no mundo.

Quando olhamos para estudos da digestão desses insetos, vemos que a nossa ignorância é constrangedora, e que a maioria dos estudos está focada em aspectos imunológicos, que se concentram em possíveis ferramentas para bloqueio do desenvolvimento dos parasitas e vírus causadores de doenças. Há pouquíssimos estudos sobre os aspectos fisiológicos básicos do inseto. Conhecemos pouco a respeito da suas enzimas digestivas, dos mecanismos de regulação e controle das condições físico-químicas do conteúdo intestinal, e muito menos sobre aspectos nutricionais que seriam importantes não só para a compreensão de como esses patógenos conseguem se desenvolver no intestino sem serem digeridos, mas que também seriam muito importantes para o desenvolvimento de estratégias de controle específicas.

Com os estudos e um maior conhecimento a respeito da fisiologia intestinal de insetos vetores, será possível no futuro não só entender melhor como se dá a interação deles com patógenos, e sua co-evolução com hospedeiros vertebrados e microorganismos causadores de doenças, mas também estabelecer a base para um bloqueio eficiente da transmissão e controle da disseminação dessas doenças. Esse é um campo aonde claramente a pesquisa básica e a pesquisa aplicada convergem para o benefício da saúde da população. Espero que não só nossos gestores, mas a sociedade como um todo, percebam a importância do assunto. Um mosquito só não será mais forte do que um país se esse se aplicar a estudar o adversário antes...