O Nhé-nhé-nhém da Academia e a Pós-graduação Inútil
Semana passada tivemos uma conferência no Instituto Oswaldo Cruz, sobre a nova política de internacionalização da pós-graduação pela CAPES. A iniciativa da diretoria do Instituto é excelente, e tenho certeza que a palestrante, da Diretoria de Relações Internacionais da CAPES, tinha a melhor das intenções. Mas o fato é que quando o seminário acabou eu estava simplesmente horrorizado.
Foram basicamente duas
razões que me causaram uma impressão tão ruim assim. A primeira é de ordem
conceitual: praticamente toda a avaliação de desempenho, que embasa e direciona
a política, se dá em função do fator de impacto dos artigos publicados pelos
cientistas, comparando esse número quando há cooperação internacional com
quando não há cooperação internacional. Há um lado muito positivo no trabalho
da CAPES, quando faz um levantamento das interações que já existem e da
opinião/demanda dos pesquisadores. A lógica é que os resultados tendem a ser
melhores se investirmos no que já está funcionando, e realmente é difícil não
concordar com isso na atual conjuntura de escassez de recursos.
Contudo, justificar e
validar a iniciativa de internacionalização através do número de artigos
publicados em revistas de alto impacto é uma estratégia que tem uma série de
armadilhas. Os pesquisadores brasileiros que publicam com colegas
internacionais tendem a ter publicações de maior impacto por uma série de
fatores, que vão muito além da mera colaboração com um grupo internacional.
Pesquisas realizadas em colaboração costumam ter um número maior de autores, e
com mais autores a rede de relações conectada àquela equipe de trabalho é
maior, o que dá maior visibilidade e tende a gerar um maior número de citações.
Ou seja, só porque tem mais gente na equipe o impacto no trabalho já aumenta um
pouquinho.
Vale a pena considerar a armadilha
semântica, que parece ingenua, mas é perniciosa, de confundir impacto de
publicação com impacto na sociedade, até mesmo na sociedade científica. A
sociedade em geral nem sabe do que se trata, e mesmo a sociedade científica
está abandonando esse número, pois sabe que não é o melhor indicativo de
qualidade que existe. Imaginem o que aconteceria se o ISI, a empresa privada que cria esses números, falir ou tiver um escândalo de manipulação dos números. Seria o fim da pós-graduação? Claro que não.
Outra questão
importantíssima nessa discussão tem a ver com a posição dos brasileiros nessas
colaborações internacionais. É claro que a participação em redes internacionais
e painéis científicos é fundamental e estratégica, mas nesse contexto os
brasileiros não tendem a ser os líderes científicos do trabalho publicado. Há
que se considerar que publicar em revistas de alto impacto é caro, seja porque
nas revistas que não cobram taxas a competição é alta, e portanto são
favorecidos os trabalhos que tem mais recursos tecnológicos e instrumentais, o
que tem custo altíssimo, seja porque nas revistas pagas as taxas para
publicação podem ser de até €2.500, ou seja, quase R$10.000. Dessa forma, a
chance de um pesquisador brasileiro publicar numa revista dessas aumenta muito
mais se ele estiver trabalhando em colaboração com um estrangeiro que pode
arcar com os custos do trabalho, e que tende a ser o líder...
O terceiro fator, que
não é menos importante, mas é mais difícil de perceber, tem a ver com temática
das publicações. Ao colaborar com grupos internacionais, a tendência é que os
pesquisadores brasileiros participem de trabalhos alinhados à agenda científica
internacional, o que se reflete no maior interesse de grupos de pesquisa em
países desenvolvidos, o que gera um maior número de citações. Não é preciso
ser nenhum catedrático no assunto para perceber que um trabalho sobre câncer ou
HIV tende a ter muito mais citações do que um trabalho sobre doença de Chagas
ou Leishmaniose, simplesmente pela abrangência do problema e pelo interesse
específico dos países mais desenvolvidos sobre cada um desses temas. Dessa forma, em vez
de termos colaborações internacionais que nos ajudem a resolver os nossos
problemas locais, favorecendo a ciência brasileira na sua conexão com a
sociedade, às vezes estamos formando especialistas em problemas de outro mundo,
o dos países desenvolvidos. Essa é uma discussão muito difícil, que vai além da
ciência e mexe com temas políticos, econômicos e sociais. O fato é que a
ciência brasileira, quando se debruça sobre temas locais, costuma ter a sua
excelência pouco reconhecida, seja porque publica em português, ou em revistas
brasileiras que tem pouca visibilidade internacional. Além disso, o escopo desses
trabalhos também tende a ter uma abrangência local, o que não faz com que eles
sejam menos relevantes para o cenário da nossa política científica. Às vezes eu
fico na dúvida se o Brasil não se beneficiaria mais trazendo estrangeiros para
nossas pesquisas locais do que internacionalizando nossos líderes científicos
ou melhores alunos lá fora.
A internacionalização
da ciência tem que ter duas vias, não adianta ficar mandando alunos e
pesquisadores para fora se não absorvemos cientistas internacionais ou formados
no exterior. Nós continuamos fora do circuito da ciência mundial em termos de alocação,
emprego e perspectivas de trabalho, já que o Brasil é pouquíssimo atrativo para alunos
e pesquisadores de outros países. Há barreiras na política de imigração, contratação,
barreiras culturais, de idioma, resistências políticas internas e, além disso,
o país não é atrativo porque investe pouco em ciência e tem condições ruins de
trabalho, se compararmos com os laboratórios de outros países do mundo. Não é à
toa que todos estão temendo a fuga de cérebros que já está acontecendo, porque um
doutor que sai do país para trabalhar em condições muito melhores lá fora, e que
não tem perspectiva de carreira no Brasil tende a não voltar. Quem é da área
sabe o custo enorme e o sacrifício para o país resultante dessa catástrofe.
O segundo aspecto da
palestra que me aterrorizou foi durante a discussão. Fiz uma pergunta sobre
qual seria a relação entre internacionalização e os programas profissionais.
Não fiz essa pergunta à toa. Eu coordeno um programa de pós-graduação, que atua
no nível de mestrado profissional, para a formação de agentes de saúde visando
o controle de vetores. Além da questão concreta e óbvia de que mosquitos não se
apresentam à Polícia Federal nas fronteiras do país, fiz essa pergunta porque
estamos alinhados a diferentes iniciativas e conversações com a OPAS e com a OMS,
visando a formação de profissionais em outros países latino americanos e na
África, com a troca de expertises entre os países.
A resposta da palestrante,
que foi endossada e aplaudida por boa parte do auditório, me deixou de cabelos
em pé. Resumindo a sua fala, ela disse que, como os programas profissionais não
fazem pesquisa, não há porque se fazer internacionalização, já que a
internacionalização tem que ser um meio para um fim além dela, e não um fim em
si próprio. A minha vontade imediata era de entregar para ela todos os projetos
de pesquisa que os alunos do programa estão conduzindo, muitos em laboratórios de
pesquisa do Instituto, que são inclusive Serviços de Referência para o Ministério
da Saúde. Se isso não é pesquisa então eu não sei o que será. Poderiam ser
dados inúmeros exemplos de como essa generalização é leviana, mas depois que me
acalmei percebi que há questões subjacentes em que a discussão é muito mais
importante.
Existem duas questões
que são urgentes e que devem ser debatidas dentro e fora da academia à
exaustão. A primeira é a falsa dicotomia entre pesquisa básica e aplicada. A academia
é muito boa em reunir argumentos e se mobilizar na defesa da ciência básica,
mas torce o nariz e lava as mãos quando se discute o fomento à pesquisa
aplicada, porque muitos acham que ela deveria ser desenvolvida pelas empresas, que têm
muito dinheiro. Eu até entendo o receio de perda de verbas e de capital, porque
se o governo decidir investir a miséria de recursos que temos atualmente apenas
em programas de pesquisa aplicada, a nossa ciência básica morre de vez e nós
sabemos que ela é essencial para o progresso e para o futuro do país.
Vale dizer que as
empresas, embora algumas sejam muito lucrativas e tenham que cultivar uma
imagem positiva junto ao resto da sociedade, não vão investir em pesquisa
básica. Mas podem se beneficiar muito no investimento em pesquisa aplicada.
Exemplos como Embraer, Vale ou Petrobras são contundentes, e seria ridículo dizer
que nessas empresas não se faz pesquisa. A academia acha que só por formar
milhares de doutores todos os anos, esses doutores vão virar mão-de-obra
qualificada para serem absorvidos nas empresas. Embora eu seja um advogado inconteste
da qualidade profissional que os nossos alunos adquirem durante a
pós-graduação, que se destaca pela capacidade e habilidade na resolução de
problemas, tenho minhas dúvidas em relação a eficácia dessa estratégia.
Especialmente porque ela depende de um alinhamento e de um entendimento com o
setor produtivo que não ocorre no Brasil. O setor produtivo costuma ter uma
agenda que é absolutamente prática e de curto prazo, e tende a procurar
qualificações específicas para a solução de problemas específicos (vulgo
¨experiência¨), o que não coaduna com a formação muitas vezes generalista de
nossos mestres e doutores.
Aqui vale a pena fazer
um parêntese para contar uma experiência pessoal. Eu já morei algum tempo na Inglaterra
e nos Estados Unidos, trabalhando em universidades e institutos de pesquisa. A
minha percepção é que nesses países as relações entre a universidade e as
empresas são muito mais produtivas, incluindo a formação de mestres e doutores
a partir dos quadros de profissionais das companhias. Nesse sentido faz-se o
caminho inverso. Em vez de formar um mestre ou doutor e torcer para que ele seja
empregado, parte-se de uma pessoa que já está inserida no setor produtivo, para
que seja transformada em um profissional mais qualificado, mestre ou doutor.
Tenho uma memória vívida dos colegas de Liverpool que faziam pós-graduação
enquanto trabalhavam na Unilever, esse gigante mundial da indústria. Que os
queridos amigos e colegas de Liverpool me perdoem pelo uso dos seus exemplos,
mas para mim foi uma grande surpresa e novidade saber que alguns deles, seja no
campo da engenharia química, biotecnologia ou engenharia de produção,
desenvolviam seus projetos de doutorado sobre emulsões alimentícias, produtos
de limpeza ou até mesmo sabão em pó. Uma tese de doutorado sobre sabão em pó
pode ser interessantíssima, dependendo da sua qualidade acadêmica.
Uma tendência bastante
recente no Brasil é a instituição de políticas de recursos humanos mais
inclusivas e preocupadas com o desenvolvimento profissional nos quadros das
empresas. Em muitas empresas são desenvolvidos o conceito de formação profissional
continuada e de universidade corporativa. Porque as nossas universidades e institutos
de pesquisa de excelência não podem ter uma parte atuante nesse processo? Tenho
a impressão de que há um pouco de preconceito com esse tipo de participação,
como se um recurso público estivesse sendo roubado pelas empresas que são
particulares, ou simplesmente porque há pouco interesse no desenvolvimento de
temas específicos, que não se conectam diretamente com os projetos de pesquisa que
são historicamente desenvolvidos nas instituições. Em outros termos, muita
gente não quer sair do laboratório, ou da zona de conforto, e se aproveita do fato de que os
alunos de pós-graduação são mão de obra barata e exclusiva. Aqui é importante fazer
o alerta de que as empresas, na figura de seus funcionários e clientes, também
são parte da sociedade, e que investir na sua formação tende a trazer benefícios
sociais econômicos enormes e de longo prazo. Em resumo, o Brasil precisa
de mais doutores em sabão em pó.
fantastic! falou e disse! Todos me chamam de maluco pq eu voltei pro brasil após 10 anos fora ..mas o que eu sempre digo é que na fiocruz estou tendo a oportunidade de fazer ciencia aplicada, algo q sempre gostei mais. Na hora que os laboratórios de pesquisa universitária entenderem que não é concorrência e sim complementariedade verão que o apoio popular pela ciencia vai aumentar muito. Veja o povo americano que paga caro pra ter a NASA , mas eles adoram a NASA então alí nao falta recursos. A divulgacao da ciencia tanto pela SBPC como pela Universidade Brasileira e centros de pesquisa é muito fraca. Precisamos de mais gente de marketing pra dizer pro povo o que a gente faz, pq a gente sabe fazer e faz mas não mostra , então pro povo a gente é apenas gastadores de dinheiro publico que poderiam ser investidos na educacao, na saúde e na segurança..
ResponderExcluirObrigado querido pelo feedback! Ainda vamos fazer muita coisa legal por aqui. Saudades irmão!
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