A digestão de insetos - parte 5



Uma razão adicional que justifica os estudos em digestão de insetos nos dias de hoje é bastante curiosa e recente. Por mais incrível que isso possa parecer, muitos especialistas ao redor de todo mundo estão seriamente preocupados com a saúde de mosquitos, moscas, barbeiros e outros insetos que no nosso imaginário apenas nos fazem mal...


A preocupação com a saúde dos insetos tem diferentes ramificações. A primeira, mais evidente e historicamente importante, é a preocupação com as espécies de insetos que são benéficas ao homem, muitas delas com grande importância econômica. O adoecimento e extinção do bicho da seda, por exemplo, teria um impacto fortíssimo nas comunidades que dependem dele. A saúde das abelhas é uma preocupação mundial, visto que uma grande parte de nossa produção agrícola depende da polinização que é feita por esses animais. Além disso, em inúmeras culturas, especialmente no continente asiático, insetos são utilizados como alimento, não só para rações animais mais para rações humanas. Insetos como grilos, larvas de besouro e de mariposas fazem parte da culinária tradicional e do cardápio de milhões de seres humanos. Nesse contexto, preocupar-se com a saúde de insetos tem um claro paralelo com o campo que nos acostumamos a chamar de Saúde Animal, onde nós nos preocupamos com saúde de espécies animais associadas ao homem, seja na agropecuária ou como animais de estimação. Da mesma maneira que temos especialistas na saúde de cachorros, bois, patos ou galinhas, no futuro será necessário gente que entenda da criação e da saúde de invertebrados, desde lesmas do escargot até escorpiões e borboletas. 



O campo da saúde invertebrados é muito mais desenvolvido quando pensamos em organismos marinhos, visto a sua grande importância econômica e o grande progresso tecnológico que foi obtido na criação de ostras, mexilhões, vieiras e crustáceos como o camarão. Há muitas pessoas que se dedicam ao estudo das infecções que esses organismos sofrem, da sua boa nutrição, e os aspectos do seu desenvolvimento e reprodução, com um grande impacto econômico nos países que dependem desses cultivos marinhos. Outro campo de destaque, no qual o Brasil se sobressai, é a criação de insetos parasitóides com uso no controle de pragas agrícolas. Esses insetos, principalmente vespas, são criados e liberados aos milhões nas mais diferentes lavouras. E para isso é necessário um grande conhecimento e especialistas na nutrição, desenvolvimento e reprodução desses animais. Também podemos destacar as criações de moscas estéreis, que são utilizadas para controle das moscas das frutas. Essas moscas são criadas em laboratório aos milhões também. E, para que a criação tenha sucesso, é necessário estudo e conhecimento dos seus determinantes de saúde, o que envolve tanto nutrição como digestão dos alimentos ingeridos.


No campo da ecologia, a saúde dos insetos tem uma importância inquestionável e avassaladora. Cada espécie de inseto faz parte de inúmeras relações ecológicas, atuando como presas, predadores, polinizadores, competidores ou geradores de recursos naturais. Insetos são fundamentais para a ciclagem de nutrientes em praticamente todos os ecossistemas terrestres. Assim sendo, a preservação ecológica sem a preocupação com a fauna entomológica é capenga e ingênua. Por melhores e maiores que sejam os esforços nossos em preservar o meio ambiente, na imagem dos micos, araras ou onças pintadas, não faz sentido preocupar-nos apenas com a preservação das espécies que nos despertam mais simpatia. A diversidade de minhocas, lagartas, lesmas e moscas também faz parte do pacote. Nesse ponto, nossa ignorância não só do ponto de vista conceitual, ao não reconhecer essas espécies como importantes e dignas de preservação, mas também do ponto de vista técnico, acaba sendo uma limitação que é vergonhosa. Nós nem sabemos quais espécies existem nos ecossistemas que precisamos e queremos preservar, quanto mais o que tem que ser feito para que esses organismos se mantenham saudáveis e preservem suas relações ecológicas. A necessidade imperiosa de preservação do meio ambiente, para que sejam preservados recursos da importância fundamental como a água, o solo, e as condições climáticas, é absolutamente consensual e ignorar isso é jogar contra a economia, a sociedade e o futuro do país.

No campo da saúde pública, nos últimos 20 anos tem acontecido uma mudança de paradigma interessantíssima. Vou utilizar o ciclo do vírus da dengue como exemplo dessa mudança conceitual. O vírus da dengue é um patógeno que circula entre mosquitos e seres humanos. Nos nossos esforços para a interrupção desse ciclo estão historicamente focados na eliminação dos mosquitos. já que não podemos ou devemos eliminar os seres humanos. É verdade que a eliminação de seres humanos de lugares em condições sócio ambientais aonde eles estão particularmente expostos ao vetores da doença seria uma política com efeitos quase que imediatos de diminuição das infecções, mas esse é o problema político e social de discussão muito difícil no Brasil, dadas as nossas condições de desigualdade e miséria da maior parte da população.

Outras estratégias possíveis para interromper o ciclo da Dengue tem a ver com a proteção dos organismos possivelmente transmissores. A proteção de seres humanos, ou seja, a ferramenta para impedir que eles adquiram e desenvolva o vírus ao serem infectados, atende pelo nome de vacinação ou imunização. Há duas vacinas contra o vírus da dengue disponíveis. Uma delas, a vacina Sanofi-Paster, apresenta problemas de cobertura da imunização e de sensibilização das pessoas após a vacinação, o que pode piorar e aumentar os casos de dengue hemorrágica. A vacina do Instituto Butantan ainda não está disponível comercialmente ou incluída no cardápio do Plano Nacional de Imunizações.De qualquer forma, não há vacinas disponíveis para a grande maioria dos patógenos transmitidos por vetores, embora essa seja a melhor estratégia para o combate de qualquer doença.

Uma possibilidade que surgiu na literatura científica há cerca de 20 anos, que é a mudança conceitual que quero discutir aqui, implica na preocupação com a saúde dos vetores. Se ao ser infectado o mosquito estiver imune ao vírus da dengue e não desenvolver a doença (a dengue também é uma doença para o mosquito), também interrompemos o ciclo. Em certos aspectos, é muito mais fácil curar um mosquito do que uma pessoa. Além disso, mosquitos podem ser manipulados em laboratório, e pessoas não...Estratégias que visam o cuidado e a proteção de mosquitos contra vírus e parasitas estão sendo desenvolvidas em inúmeros laboratório ao redor do mundo, tentando criar mosquitos que não pegam vírus da dengue, ou que não pegam o parasita da malária, ou mesmo barbeiros imunes ao Trypanosoma cruzi, o parasito causador da doença de Chagas. Isso é feito utilizando insetos transgênicos, associados com a bactéria Wolbachia, ou por modificações genéticas de bactérias associadas aos insetos, estratégia conhecida como paratransgêne. Seja como for, se desenvolvermos mosquitos ou barbeiros imunes às doenças, também interromperemos o ciclo de transmissão. E nesse sentido, na preocupação com a saúde desses insetos, são fundamentais os estudos de nutrição e fisiologia digestiva, seja para a criação desses insetos em larga escala, seja para entender melhor os efeitos da manipulação genética e da infecção pelos patógenos. Embora possam ser questionadas em outros contextos, muitas dessas estratégias vem sendo testadas em diferentes lugares do mundo, incluindo o Brasil, com relativo sucesso. A saúde do ser humano dependerá, no futuro, de estudos e da manutenção da saúde do ambiente como um todo. E isso inclui até a saúde das moscas e baratas!

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