A Sociedade do Espetáculo - Guy Debord



¨Já não se pede à ciência que compreenda o mundo ou o torne melhor. Pede-se que ela justifique instantaneamente tudo o que é feito. Tão estúpida nesse terreno quanto em todos os outros, que ela explora com a mais nociva irreflexão, a dominação espetacular derrubou a árvore do conhecimento científico com a finalidade única de dela talhar uma matraca.¨ (Guy Debord)

Terminei de ler recentemente um livro extremamente interessante, cuja leitura quero recomendar. Chama-se ¨A Sociedade do Espetáculo¨, de Guy Debord. Há muitos fatos interessantes a respeito desse livro. Ele foi publicado em 1967, um ano antes da Revolução Estudantil francesa que mudou os rumos da história, e é um manifesto de um movimento que se denominou Internacional Situacionista. A edição  que li é de 1997, da Editora Contraponto, na 14º reimpressão de 2016. 

Um comentário que resume bem o assombro que esse livro causa está na orelha da capa (coisa que os livros digitais não tem, vejam só): ¨ele não antecipou 1968, antecipou o século XXI¨. E realmente a propriedade da crítica à sociedade, que se aplica quase que perfeitamente aos tempos atuais, é impressionante. Faz pensar muito no grande papel que os pensadores têm na história, muitas vezes perecebendo os movimentos da humanidade ou da civilização, situações que estão difusas, pairando no ar, e colocando elas no papel, o dedo na ferida...

E como há feridas no livro de Guy Debord. É muito difícil resumir todo o fluxo de pensamentos do livro, mas em linhas gerais a crítica se baseia na nova estrutura e dinâmica da sociedade moderna, pautada pela mídia e por uma experiência de dominação quase perfeita dos mercados sobre os corpos e as mentes dos indivíduos, nas novas estruturas de produção e consumo. Ele antecipa a globalização, a realidade virtual, o descolamento das nossas consciências da realidade, o massacre da mídia, a pós-verdade.

Algumas linhas de raciocínio me fizeram refletir bastante sobre o papel que a ciência teve no desenvolvimento da sociedade do espetáculo. O primeiro, mais óbvio, é o aspecto técnico, com o desenvolvimento das comunicações, dos transportes, das tecnologias de produção, todos os novos conhecimentos que vem crescendo numa espiral cada vez mais rápida e avassaladora. Mesmo para os especialistas de qualquer área é quase impossível se manter completamente atualizado... 

O segundo é mais conceitual. Debord parte em um momento do livro de um conceito importante, de que na sociedade atual ¨só é bom o que é visto¨, ou seja, a associação que se faz rotineiramente entre qualidade e publicidade de qualquer fato, objeto ou conhecimento. É um pouco chocante perceber como a ciência também participou desse processo de espetacularização da vida, e fico na dúvida se nós, cientistas, não fomos em parte gestores dessa mudança no comportamento humano.

Desde o começo da carreira somos martelados constantemente com o fato de que temos que PUBLICAR nossos dados, que a maneira de retornar o investimento feito pela sociedade nos nossos estudos tem que ser tornado PÚBLICO. Há algo de irônico nessas afirmações, por que há poucas coisas mais herméticas do que um artigo científico, que é escrito geralmente para um público de especialistas. Mas mesmo assim, a intenção parece ser a melhor possível: publicando nossos resultados, outros cientistas podem confirmar ou refutar nossos achados, e podem iniciar seus estudos a partir do que registramos, evitando assim a repetição de erros e avançando mais rapidamente na descoberta de novidades ou no aprofundamento do que já sabemos.

Eu já tive conversas muito enfáticas com meus alunos, preocupado que estava com o seu sucesso e futuro profissional, orientando eles a serem OBJETIVOS e PRODUTIVOS. O meu foco maior era na argumentação de que hoje a profissão de cientista é muito parecida com as outras. Cientistas (os que são oficialmente empregados) são especialistas que recebem salários, têm férias e décimo terceiro, hora de entrar e hora de sair do trabalho. Muitos trabalham em escritórios! Com essa lógica, de que não somos mais Leonardos da Vinci ou Isaac Newtons, generalistas e relativamente livres, eu exemplificava que eles tinham que PUBLICAR ARTIGOS da mesma forma que um padeiro faz pães, ou que um marceneiro monta armários. Adianta fazer só a massa? Adianta montar meio armário? E assim eu tentava estimular eles a que fossem BEM SUCEDIDOS.

Há uma confusão enorme nos dias de hoje em relação aos valores do produto e do processo, mas isso é tema de outra discussão (e que já foi pontuada AQUI). O ponto no qual o livro de Debord me assustou é que nós não só passamos por uma era de competição total e de automatização da produção do conhecimento, como ¨publish or perish¨, mas agora passamos por uma era de publicidade do conhecimento científico sem precedentes, com os artigos sendo transformados em noticias, notas, vídeos, aulas, material de apoio, e qualquer maneira de expor o conhecimento para o público em geral é bem vinda. As revistas pedem até sumários gráficos para ajudar na exposição dos trabalhos para um público mais amplo.

Em teoria a intenção é das melhores, e eu sou um grande advogado dessas iniciativas, mas até que ponto não estamos colaborando para a espetacularização do conhecimento, para a banalização da ciência, para a superficialidade do diálogo quando saímos de nossas pequenas bolhas do saber? E até que ponto as ferramentas de comunicação, em vez de espalhar um conhecimento mais correto e sedimentado em evidências, não fazem apenas com que as pessoas escolham o seu conhecimento científico ou pseudo-científico de acordo com suas conveniência e convicções, já que a ciência virou um produto de consumo massificado?

O livro de Debord é perturbador. Não há nenhuma saída fácil para as armadilhas da nova sociedade, e em breve boa parte do conhecimento científico será criado por robôs. Nós, cientistas, fazemos parte desse produto histórico e ajudamos a construir a sociedade da informação total e da desinformação galopante. A ironia dos tempos é suprema: o livro de Debord...é um espetáculo. E também faz parte dele.

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