O enterro dos ossos



É possível aprender alguma coisa com a tragédia do Museu Nacional, destruído após um incêndio que com certeza era completamente evitável?

A primeira coisa que vamos aprender é o tamanho da ciência para o Brasil e para os brasileiros. E como isso é desigual, tanto como somos desiguais em quase todos os aspectos. As pessoas que trabalham com qualquer tipo de ciência estão arrasadas, desfiguradas, absolutamente em choque. As pessoas que lá trabalhavam perderam a vida e nunca mais serão as mesmas.

Mas a grande maioria da população provavelmente nem saberá do que se trata. Não duvido que na parte da tarde do dia seguinte as manchetes principais dos principais jornais do país já destacarão outra coisa, uma balela qualquer dita por qualquer um dos nossos acéfalos candidatos a presidente, ou a nova tragédia anunciada da vez. Dificilmente o destaque para a perda do Museu Nacional durará dois dias.

Isso apenas confirmará o que todos já estão cansados de saber: o valor da ciência, para os nossos governantes e mesmo para a elite da população, é zero em termos práticos. Em teoria todos apoiam e dizem como são importantes a educação, a ciência e a tecnologia. Mas essa valorização padece de um mal crônico: a educação, a ciência e a tecnologia são fenômenos sociais, e enquanto os brasileiros se preocuparem apenas com a formação de suas famílias, e não com a sociedade que os cerca, seremos de uma pobreza mental eterna. E nunca haverá dinheiro nem para trocar as tomadas de qualquer um de nossos museus.

Também podemos aprender sobre responsabilidades. O incêndio do Museu é federal, é estadual, é municipal. As autoridades do Rio de Janeiro provavelmente sumirão por alguns dias, e os candidatos de sempre não farão nenhuma menção à catástrofe, já que filho feio não tem pai e que os políticos atuais (que são os mesmos no Rio de Janeiro há séculos) contam com o esquecimento e com a avalanche da mídia para sobreviver. E os cientistas brasileiros terão reafirmado um fato antigo que já estão cansados de saber: a nossa classe política é burra, ignorante, analfabeta. Não há muita diferença entre o Tiririca e o Pezão. Nós sabemos.

Um aprendizado que seria muito mais importante, mas que duvido que aconteça, é no interior de nossas instituições de ensino e pesquisa. A maioria das instituições de C&T brasileiras não tem política de compliance nem de governança corporativa. E nem sabe o que é isso. Se souber não aplica. Isso não significa que os organogramas não estejam repletos de caixinhas com comissões com as mais diversas funções, algumas inclusive com direito à remuneração extra.

Na prática, um museu NUNCA deveria pegar fogo. Isso significa que as pessoas estavam trabalhando em condições precárias. O Museu não poderia estar aberto, nem para suas atividades de pesquisa regulares. Mas nossas instituições muitas vezes são patrimonialistas, e os gestores, por mais que cometam abusos, e sejam estúpidos cada um à sua forma, não têm nenhuma instância com poder de controle REAL sobre suas ações. Os cientistas tendem a viver em um mundo à parte, e são extremamente corporativistas. Até quando isso coloca em risco a saúde e a vida das pessoas.

Faço aqui um parêntese pessoal. Há muitos anos atrás, uma de minhas alunas estava no banheiro do andar em que trabalhamos, quando a parede desabou sobre ela. Era uma dessas paredes de mármore, que pode ser chamada de divisória. O fato é que estamos falando de uma estrutura de mais de cem quilos, que caiu sobre a perna da estudante. Fora o susto inimaginável, a estudante sofreu uma lesão de gravidade média na sua perna. Eu não estava presente, e ela (mais as pessoas que presenciaram o acidente) tentaram acionar a brigada de incêndio. Que não fez nada e, detalhe, há um brigadista de plantão 24 horas em todos os prédios do Instituto, incluindo o nosso. O serviço de saúde do trabalhador também não fez quase nada, mas questionou à aluna se ela não havia se pendurado na parede e causado o desabamento. Depois de uma espera de algumas horas, um colega levou ela pessoalmente à emergência privada, do convênio ao qual a família dela tinha direito.

E depois não houve acompanhamento nenhum do caso. Eu escrevi uma carta indignada, que deve ter sido devidamente arquivada e carimbada pelos serviços burocráticos. Foi colocada uma divisória nova no lugar. E continuamos a viver a vida como se nada houvesse acontecido. Obviamente para a aluna isso foi muito mais difícil, pois além do dano físico que demorou para recuperar, houve o dano psicológico, a sensação de abandono e desamparado por parte da instituição. Eu tentei fazer o meu melhor, mas não sei se foi suficiente.

O contraponto, novamente da minha história pessoal, vem da Inglaterra. No período em que trabalhei na Escola de Medicina Tropical de Liverpool, me acostumei com o treinamentos para incêndios, que aconteciam sempre às sextas feiras. A sirene tocava às 10 horas, e todas as pessoas saíam do prédio imediatamente. Os brigadistas seguiam a rotina de emergência e se encontravam nos pontos assinalados. Isso acontecia com uma regularidade tão grande que as pessoas até programavam seus experimentos e reuniões para não coincidir com o treinamento de incêndio. A lição que ficou para mim dessa época é que, em segurança, O CAPITAL É HUMANO.

O fato é que a maioria dos cientistas brasileiros se acostuma a trabalhar em condições insalubres e perigosas. Os alunos de pós-graduação não têm praticamente direito algum. Nem à assistência médica, o que dirá a condições seguras de trabalho. A posição dos nossos gestores é sempre de acomodamento, de gambiarras. E com isso não ganhamos nada. Tocamos nossas pesquisas com paixão, publicamos artigos e orientamos nossos alunos até que aconteça uma catástrofe sem precedentes.

O incêndio era evitável? Claro que sim. As pessoas deveriam estar trabalhando naquelas condições? Claro que não. Quem deve responder pela perda? No calor da indignação, a sugestão que me vem à cabeça é que todos os alunos e pesquisadores processem o Estado por danos materiais e pessoais. Não sou especialista em legislação, mas acho que o estado, na figura de seus gestores, o que inclui o diretor do museu e da universidade, devem ser responsabilizados. E quanto mais alto batermos melhor: pode-se responsabilizar o prefeito, o governador, algum ministro, o presidente? E essa responsabilização deve ter valor POLÍTICO, pois a maioria de nossos gestores (os acadêmicos também) só se preocupa com os votos nas próximas eleições.

E o que podemos fazer preventivamente? Levar as denúncias futuras de más condições a sério. Se uma instituição de pesquisa não tem condições de funcionar, deve ser fechada. Se o Estado não dá a mínima condição de segurança para o acervo e para as pessoas que ali trabalham, o prédio deve ser fechado, custe o que custar. Nós sabemos que a esculhambação com segurança é generalizada, que a fiscalização não existe, ou não serve para nada, e muitas vezes em lugares que podem ser responsabilizados muito mais facilmente, como estabelecimentos comerciais (lembram da Boate Kiss?). Apesar da minha experiência infeliz com o acidente da aluna, tenho que reconhecer que nesse aspecto a Fiocruz é uma ilha de excelência, com políticas de segurança do trabalho bastante sérias e engajadas. Mas ao mesmo tempo temos prédios extremamente antigos, muitos sem condições adequadas para albergar laboratórios de pesquisa, e nossa margem de manobra é mínima. Tendemos a nos acomodar e trabalhar do jeito que dá.


Eu não sei se devemos reconstruir o Museu Nacional. Se for para que, 5 anos após a inauguração, o que sobrou do acervo continue em perigo, isso será inútil. Precisamos mudar a nossa cultura institucional, e adotar medidas de controle interno de segurança realmente efetivas e responsáveis. Eu prefiro que transformemos esse limão azedo e amargo numa limonada saudável, e não em mais uma obra para superfaturar, ou uma fitinha para o governador irresponsável da vez cortar nas fotos. Eu gostaria de ser mais positivo nesse texto, mas hoje não dá. Meu coração e meu cérebro estão de luto pela perda do Museu mais importante do país.

Comentários

  1. Fui bolsista do CNPq na modslidade de Iniciação Científica. Aprendi muito, meus primeiros passos na entomologia foram lá. Chorei muito e meu coração continua em pedaços. Só de imaginar a coleção de insetos a qual eu cuidava em chamas é extremamente doloroso!

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    1. Imagino o seu sofrimento. Se o laboratório aonde eu comecei a carreira, no Instituto de Química da USP pegasse fogo, eu choraria pelo resto da vida. Precisamos nos mobilizar de verdade, internamente, para que não aconteçam mais catástrofes como essa...

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  2. Sem palavras, concordando imensamente e dolorosamente com todo texto.

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    1. Obrigado pelo feedback. Precisamos estar juntos numa hora dessas...

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