A digestão de insetos - parte 7



Agora que já discutimos algumas das razões pelas quais o estudo da digestão de insetos é importante, gostaria de começar a próxima parte desta discussão destacando os dois principais problemas teóricos que preocuparam os pesquisadores nesse tema por muito tempo...


O primeiro é a capacidade absolutamente fantástica que insetos têm de se alimentar de praticamente qualquer coisa. Os insetos dominam os ecossistemas terrestres, e neles têm o papel de predadores, herbívoros, onívoros, detritívoros. Insetos que conseguem se alimentar de guano, madeira, e até de plástico!


Por exemplo, no laboratório nós temos uma colônia de flebotomíneos. Essas mosquinhas são importantes do ponto de vista médico porque transmitem o parasita causador da leishmaniose. Entretanto, o fato da vida desses insetos que sempre me maravilha é o desenvolvimento das larvas. As larvas dessas moscas são detritívoras, se alimentam de matéria orgânica presente no solo. A ração que usamos em laboratório para criar esses insetos é uma mistura de cocô de coelho, com ração de coelho e terra. Essa mistura é batida no liquidificador e deixada para apodrecer por alguns dias. Em outras palavras, as larvas de flebotomíneos estão adaptadas a comer cocô de coelho podre! E, o que é mais surpreendente, elas estão adaptadas para isso, e não são capazes de comer qualquer outra coisa. Se oferecermos um Big Mac para esses insetos, eles simplesmente recusarão e morrerão de fome. Ou terão uma baita indigestão.


Outro exemplo de adaptação fantástica ao hábito alimentar que é pouco usual é a digestão de madeira por cupins e besouros. Nós não costumamos ver a madeira que compõe os nossos móveis como alimento. Mas, se pensarmos do ponto de vista bioquímico, ela é composta de nada mais nada menos do que açúcar. A madeira dos nossos móveis é praticamente açúcar puro! É claro que estou fazendo uma brincadeira aqui, porque o açúcar em questão, a celulose, não pode ser digerido pelo seres humanos, pois não temos as enzimas digestivas que são necessárias para isso. Contudo, um número quase infinito de organismos consegue se alimentar de madeira e, novamente surpreendente, está adaptado para isso e não consegue se alimentar de outra coisa.


O último exemplo maravilhoso que quero mencionar aqui é o da digestão de sangue. Por mais que nós imaginemos que nosso sangue seja rico e precioso, ele é um alimento nutricionalmente pobre, sendo rico apenas em proteínas. Ele não possui muitos lipídios e vitaminas essenciais, e é muito pobre em carboidratos, que é um componente nutricional importante para a maioria dos organismos. Organismos que se alimentam de sangue tem uma série de adaptações fisiológicas e bioquímicas para explorar um alimento tão ruim. Um tema recorrente é a associação com simbiontes intestinais. Além disso, esses organismos também precisam desenvolver inúmeras adaptações e defesas para os compostos tóxicos do sangue, geradores de radicais livres em uma quantidade tão grande que mata a maior parte das células e organismos conhecidos.


Se fôssemos transpor esses exemplos maravilhosos para a nossa mitologia, estaríamos falando de seres fantásticos que vivem debaixo do solo e se alimentam do lodo, organismos que vivem dentro das árvores e que povoam as florestas, ou vampiros voadores sugadores de sangue. Se quiséssemos, a saga do senhor dos anéis poderia ser puramente entomológica. Esses organismos estão repletos de mistérios, os quais foram decifrados por uma grande comunidade de cientistas especialmente ao longo do século XX. A participação de cientistas brasileiros nessa saga foi fundamental. A resposta para esse primeiro enigma será dada nas próximas postagens, pois não quero me estender demais. Seja como for, fica aqui o desafio: como é possível que existam seres vivos capazes de digerir praticamente qualquer coisa? Espero que tenham gostado e que continuemos a nossa discussão nas próximas semanas. Um grande abraço a todos!

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