Ensaios, ensaios, ensaios...e o microscópico intestino da mosca!!!


O trabalho do nosso laboratório que quero comentar hoje é um artigo que foi publicado no final do ano passado, 2017, na revista Frontiers in Physiology. O título é ¨Standardization of a Continuous Assay for Glycosidases and Its Use for Screening Insect Gut Samples at Individual and Populational Levels“. À primeira vista esse artigo pode parecer um pouco simples, mas há algumas questões importantes a serem aprendidas com esse trabalho...

De forma resumida, o que fizemos foi adaptar um ensaio enzimático que é usado há décadas, para o estudo de atividades enzimáticas em insetos pequenos, ou amostras muito pequenas. As enzimas que estudamos nesse trabalho são conhecidas como glicosidases. Glicosidases são enzimas que clivam açúcares pequenos, ou que removem pequenas porções de açúcar das pontas de substratos mais complexos. Uma glicosidade muito conhecida, por exemplo, é a sacarase, enzima que quase todos os organismos têm. Ela degrada açúcares como sacarose (açúcar de cozinha) ou maltose, o açúcar derivado da hidrólise do amido.

Essas enzimas podem também ser detectadas com o uso de substratos sintéticos, os quais, após a hidrólise, geram um composto fluorescente. A fluorescência é uma técnica extremamente sensível para detecção de moléculas, muito mais sensível do que a colorimetria ou outras técnicas clássicas de determinação de produtos de reações químicas. Ensaios fluorescentes de atividade enzimática são usados para detectar glicosidases de insetos há pelo menos 40 anos. Contudo, um problema técnico nesse tipo de medida é que a condição na qual o produto exibe fluorescência é alcalina, enquanto as enzimas funcionam em condição ácida. Dessa forma, para se detectar a atividade após ação da enzima, era necessário elevar o pH da mistura de reação, trazendo o conjunto todo para a alcalinidade. Assim sendo, não era possível determinar atividade enzimática diretamente, sendo necessária a interrupção da reação e a medida posterior do seu produto após a alcalinização.

Um fato tecnológico importante é que quando esses ensaios fluorescentes foram padronizados, os aparelhos de detecção mais comuns eram fluorímetros de cubeta, sem controle de temperatura. Dessa maneira o ensaio tinha que ser incubado em banho-maria, interrompido por fervura, alcalinizado, para posterior detecção da fluorescência. O fluorímetros atuais são apenas capazes de medir fluorescências em amostras com volume muito reduzido, e também são capazes de controlar a temperatura da amostra que está dentro dele, sendo possível realizar ensaios dentro do próprio equipamento de leitura.
Dessa forma, decidimos testar se era possível detectar a fluorescência sem o passo de alcalinização, medindo diretamente o produto de ação enzimática gerado dentro do equipamento. Padronizamos a detecção da fluorescência para condições ácidas que, embora menos sensíveis, permitiram uma detecção da atividade enzimática equivalente a técnica anterior, com a alcalinização. Dessa forma, os ensaios enzimáticos ficaram mais simples, e é possível realizar um número muito maior de ensaios enzimáticos com a mesma amostra e na mesma quantidade de tempo.

Para comprovar isso, nós detectamos atividades enzimáticas em barbeiros da espécie Rhodnius prolixus, e no flebotomínio Lutzomyia longipalpis. Os dois são espécies de insetos vetores muito importantes, mas nesse estudo eles são utilizados apenas como modelos de insetos pequenos, cuja detecção das atividades enzimáticas seria trabalhosa. Com a nova padronização, é possível realizar ensaios enzimáticos em insetos individuais com facilidade, sendo possível realizar ensaio enzimáticos de centenas de insetos em um único dia. Antes disso, o que se realizava eram ensaios enzimáticos de amostras que reuniam um certo número de insetos, como 5,10, 20 ou até uma centena de insetos, caso dos flebotomíneos.

A partir do momento em que foi possível fazer ensaios individuais, nós nos interessamos na distribuição populacional das atividades enzimáticas. Percebemos uma coisa muito interessante: enquanto algumas enzimas mostraram uma distribuição padrão na população, descrita em termos estatísticos como curva normal, outras enzimas apresentavam uma distribuição distorcida, com a curva deslocada para esquerda. Isso tem uma implicação técnica importante, porque quando a distribuição é deslocada para a esquerda os testes estatísticos que tem que ser aplicados para o estudo dessa atividade tem que ser diferentes. Em termos técnicos, os testes devem ser não paramétricos, em contraposição ao testes paramétricos utilizados para análise de atividades normais.

Outro fato que se sobressai é que para que essas curvas sejam deslocadas para esquerda, é necessária a existência na população de insetos com atividades enzimáticas extremamente elevadas. Num contexto aonde essa enzimas sejam inibidas, esses insetos podem ser importantes para a adaptação da espécie, e sobrevivência da população. Sabe-se que tanto plantas como patógenos intestinais podem inibir glicosidases, ou seja, essas enzimas podem ser importantes na adaptação de insetos aos mecanismos de defesa de plantas e na defesa contra microorganismos. Um fato importante que descobrimos, ao realizar esse rastreamento de atividades, é que a atividade enzimática dos insetos variam em até 1000 vezes, um fato que passava desapercebido quando se realizavam os ensaios com a técnica anterior.

A primeira lição geral que tiramos desse artigo é que às vezes para se fazer incrementos técnicos relevantes não se precisam de grandes novidades tecnológicas, mas sim de ideias cuja aplicação é bastante simples. Outra lição tem mais a ver com os estudos da nossa área: quem poderia imaginar que insetos que à primeira vista parecem tão parecidos pudessem apresentar diferenças tão grandes na sua atividade intestinal? Fica aqui a percepção não trivial e contra intuitiva de que mesmo mosquinhas tão pequenas, que à primeira vista parecem ser a mesma coisa, podem ser indivíduos com o metabolismo e digestão completamente diferentes.

O artigo é de acesso aberto está disponível no link abaixo. Se tiverem dúvidas ou qualquer tipo de curiosidade, perguntem nos comentários! Um excelente dia a todos e até o próximo artigo…



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