Em busca de novos larvicidas para o mosquito da Dengue - e da felicidade!




Continuando a série de comentários a respeito dos artigos do nosso laboratório, hoje quero falar sobre um artigo que publicamos em 2016, no periódico internacional PLOS ONE. A história desse trabalho é muito bonita para mim, por que ele remonta às descobertas do início da minha carreira científica e ao trabalho com uma das minhas primeiras alunas no laboratório do Rio de Janeiro.


Desde a minha iniciação científica, eu estudo um grupo de enzimas digestivas de insetos chamado beta-1,3-glucanases. Essas enzimas degradam polissacarídeos conhecidos como beta-1,3-glucanas, açúcares que são muito importantes na parede das células de plantas e fungos. Eu iniciei o estudo dessas enzimas focando em um inseto herbívoro, um gafanhoto, detalhando o papel dessa enzima na digestão de carboidratos das plantas da sua dieta. Com os anos, estendemos esses estudos para insetos detritívoros e outros insetos herbívoros, como besouros, mariposas e baratas.



Quando vim para o Rio de Janeiro, mudei o um pouco o objeto da minha pesquisa, focando agora em insetos vetores de doenças. Como os estágios adultos dos insetos vetores que estudamos são predominantemente hematófagos ou sugadores de néctar, não havia muito interesse objetivo no estudo de uma enzima que digere a parede de células vegetais ou fúngicas.



Aqui vale fazer um parêntese a respeito de uma simplificação que é muito comum no estudo de insetos vetores: a maioria dos trabalhos foca exclusivamente no estágio adulto, especialmente nas fêmeas, que são os insetos que sugam o sangue de vertebrados e transmitem doenças. Essa escolha é bastante justificada, pois os estudos tentar entender como se dá transmissão de patógenos, pensando em estratégias para minimizar a infecção dos vertebrados ou mesmo até dos próprios mosquitos (ver AQUI). Contudo, essa escolha embute uma armadilha cruel: insetos vetores como mosquitos  e moscas são holometábolos, ou seja, possuem metamorfose completa. O estágio larval é completamente diferente do estágio adulto, não só em termos morfológicos como também fisiológicos e ecológicos. Em outros termos, os estágios iniciais da vida do mosquito são larvas que não tem nenhuma semelhança com o estágio adulto, o mosquito que nos pica e nos chateia no dia-a-dia. As larvas de mosquitos são aquáticas e se alimentam de detritos. Ao mesmo tempo, todos os estudos apontam que as estratégias mais eficientes de combate dos mosquitos reside justamente no controle dos criadouros das larvas. Ou seja, a maioria dos estudos se concentra justamente no estágio do mosquito aonde o controle é menos eficiente!



Com essa perspectiva, demos início a estudos da fisiologia digestiva de larvas de mosquitos e de moscas. Para minha alegria, esses insetos são detritívoros e se alimentam de uma grande quantidade de matéria orgânica vegetal e fúngica. Ou seja, nesses insetos era bastante provável que a beta-1,3-glucanase fosse importante na digestão, e eu me reencontrei com a enzima que estudei no começo da minha carreira científica.



Aqui vale a pena falar um pouco do aspecto humano de se fazer ciência. Enquanto estava na iniciação científica, preparando-se para o mestrado, a Raquel iniciou alguns testes tentando explorar um pouco as ideias acima. Inicialmente, nós queríamos saber se alimentando as larvas de Aedes aegypti, o mosquito da dengue, com leveduras de pão, nós veríamos um aumento da atividade de beta-1,3-glucanase, enzima que teoricamente digere as paredes desse fungo. Como nós não tínhamos uma levedura isolada no laboratório, eu comprei fermento de pão no supermercado e fizemos os primeiros testes usando isso como alimento. Os ensaios enzimáticos não ficaram muito bons, mas para nossa surpresa as larvas alimentadas com fermento de pão eram muito maiores e ativas do que as larvas alimentadas com a dieta padrão, que naquela época no nosso laboratório era ração de gato. Isso nos surpreendeu, porque a ração de gato teoricamente possui um conjunto de nutrientes e vitaminas bastante completo. Mas as larvas de mosquito criadas com fermento de pão pareciam absolutamente saudáveis e felizes, embora não tenhamos uma definição exata do que é a saúde ou a felicidade para uma larva de mosquito...



Durante o mestrado e o doutorado, a Raquel esporou esse fenômeno mais sistematicamente. Alimentamos as larvas de mosquito com leveduras isoladas da espécie Saccharomyces cerevisiae e observamos os parâmetros de desenvolvimento das larvas. Dessa vez nós comparamos os resultados com uma dieta que é o padrão ouro para criação de mosquitos, uma ração para peixes. E, para nossa surpresa, o mosquito consegue fechar todo o seu ciclo se alimentando apenas de um único microorganismo. As larvas alimentadas com Saccharomyces cerevisiae apresentaram um desempenho comparável ao padrão ouro!



Vendo esse resultado, decidimos analisar o que acontecia com as leveduras dentro do intestino das larvas, e observamos que as células de leveduras após a ingestão morrem dentro do intestino em um intervalo de poucas horas. Experimentos em tubos de ensaio, aonde misturamos as células de levedura com o conteúdo intestinal das larvas, mostraram que havia alguma coisa no intestino dessas larvas responsável pela morte dessas leveduras, e que era possível recuperar esse agente a partir do conteúdo intestinal. Realizamos esses experimentos adicionando à mistura de reação inibidores específicos de beta-1,3-glucanases, e a morte das células de levedura parou de acontecer. Esses dados sugerem fortemente que a beta-1,3-glucanase é a enzima responsável pela digestão da parede das leveduras nas larvas de mosquitos. Nós também detectamos e mostramos a presença desse enzima em todos os tecidos das larvas, especialmente no intestino, na cabeça e na parede do corpo.




Dessa forma pudemos concluir que a beta-1,3-glucanase é uma enzima importante para a digestão e o desenvolvimento das larvas desse mosquito. Essa conclusão tem algumas consequências importantes. A primeira é que passamos a conhecer um pouco mais da fisiologia e biologia do mosquito. Ao olhar os livros texto, o conhecimento que se tem a respeito da digestão dessas larvas é vergonhosamente incompleto. Ao dizer que um inseto é detritívoro, não estamos falando muito sobre sua biologia.. O que significa detrito? Detrito pode ser qualquer coisa. Nós mostramos que células de leveduras ou fungos são um componente importante da dieta desses animais.



Além disso, saber que essa enzima é importante para digestão do inseto, resulta no conhecimento de um alvo para desenvolvimento de novos inseticidas. Essa enzima pode ser inibida, seja por compostos que atuam diretamente na sua atividade, ou por estratégias que inibam a sua expressão gênica. No laboratório nós estamos explorando essas duas possibilidades, como isolamento de inibidores dessa enzima e o desenvolvimento de ferramentas para manipulação da expressão gênica em larvas de mosquito. Se tivermos sorte, um dia teremos um inseticida que funcionará matando as larvas do mosquito de fome.



Outra consequência interessante do nosso estudo é que ajudamos a criar as bases para uma criação de larvas de mosquito mais eficiente, padronizada e barata. A criação de larvas de mosquito em larga escala é um ponto estratégico de muitas estratégias novas de controle do mosquito da dengue. Não é exagero dizer que fábricas de mosquito passarão a fazer parte da economia do país, ajudando o Ministério da Saúde no controle desse vetor. Assim sendo, nossos achados também têm uma importância biotecnológica que pode vir a ser explorada, para o desenvolvimento de rações melhores e mais baratas para larvas de mosquito.



Esse trabalho pode ser acessado gratuitamente clicando AQUI. Espero que tenham gostado e até a próxima!

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