A difícil arte de revisar trabalhos científicos


Revisar trabalho é uma atividade fundamentalmente chata. Isso não quer dizer que também não seja fundamentalmente importante. No meu dia-a-dia, eu me vejo revisando o trabalho dos outros todo o tempo, basicamente em dois contextos: revisão do trabalho de alunos, e revisão de artigos científicos de colegas da minha área de pesquisa.


Em relação ao primeiro contexto, eu diria que para escrever artigos com os alunos é preciso muita paciência, mas ao mesmo tempo é uma tarefa muito gratificante. Muitos concordariam que dá muito mais trabalho revisar e consertar o texto de outra pessoa do que escrever o próprio texto. Contudo, eu pessoalmente acredito que  é fundamental que os artigos científicos sejam criações dos próprios alunos, por duas razões. A primeira, óbvio, é que os alunos não aprenderão a escrever artigos se eles não o fizerem. A segunda, de natureza mais conceitual, é que acredito na construção coletiva do saber científico, e o conhecimento do aluno, seus insights, suas ideias, são fundamentais para que tenhamos um trabalho mais rico e completo. Eu me orgulho ao ver que os artigos científicos do meu grupo tem a cara de cada um dos meus alunos. E essa é uma das pequenas glórias que um orientador de pós-graduação pode cultivar, já que ninguém além de mim poderá ter essa percepção.



O segundo contexto é mais confuso, mas não menos importante. Eu recebo convites para revisar artigos da minha área semanalmente, às vezes diariamente. É uma tarefa ingrata e não remunerada. Porque, então, eu continuo a realizar esse serviço? Novamente, há várias razões que justificam essa atividade. A primeira é que geralmente os artigos são interessantes, e sua leitura não deixa de ser um uma atividade intelectual estimulante e que me colocar a par das novidades estão sendo feitas pelos meus colegas. A segunda razão tem a ver com a própria sobrevivência da atividade científica. Se eu me recusar a corrigir os trabalhos dos meus colegas, e se todo mundo fizesse o mesmo, não haveria revisão por pares e, portanto, a qualidade e consistência do conhecimento científico seriam dificilmente mantidas. Assim sendo, revisar os trabalhos dos colegas é uma tarefa fundamentalmente boa.



Um contraponto é que todos nós temos cada vez menos tempo, e a revisão de artigos é uma tarefa que, se bem feita, dá muito trabalho e pode levar dias. Quero compartilhar algumas idéias que recolhe ao longo do tempo que me ajudam nessa árdua missão.



A primeira, que é mais recente mas que é de suma importância, é observar o caráter e qualidade da revista. Nós estamos sendo inundados por uma infinidade de revistas predatórias de baixa qualidade, cujo principal interesse é arrecadar taxas de publicação. Não vale a pena revisar artigos de revistas assim. Os artigos que vem dessas revistas são geralmente muito curtos, de uma ou duas páginas, com poucos dados e informações, e muitas vezes são de natureza apenas revisional. Não há muito o que aprender com a leitura desses trabalhos. Além disso, a sua promoção também não contribui muito com a nossa área, já que se todo mundo resolvesse publicar revisões ou artigos de uma ou duas páginas ninguém em sã consciência teria condições de ler e acompanhar todos esses documentos de conhecimento redundante. A impressão que tenho é que muitos desses artigos tem origem na obrigatoriedade de redação de monografias ou artigos de conclusão de curso por parte de alunos das universidades. E que também servem para inflar currículos acadêmicos.



Satisfeito o critério de qualidade da revista, uma questão importante é que considero que o papel do revisor tem uma circunscrição definida. Por exemplo, na maior parte dos casos, não faz sentido o revisor avaliar a propriedade da publicação do artigo em termos de impacto ou linha editorial da revista, já que essa é uma prerrogativa do editor. Ou seja, se recebi um artigo para revisar, é porque o editor já avaliou que ele pode ser publicado na revista. Por isso que vejo como contraditórios e sem sentido pareceres que avaliam que determinado artigo está ou não está na linha editorial, ou que não teria impacto suficiente, especialmente quando essas considerações vem a partir dos revisores.



Outro fato importante tem a ver com a postura geral frente à publicação do conhecimento científico. Vejo muitas vezes revisores marrentos, que encaram o processo de revisão como uma luta ou disputa para ver quem tem O melhor discernimento. Eu até entendo que a falseabilidade é um dos pilares do progresso científico, mas estender esse crivo além do razoável muitas vezes esconde apenas questões de ego pessoal. Uma importante lição que aprendi com o querido professor Matt Rogers da Escola de Medicina Tropical de Londres é que, se o artigo e consistente, mesmo que não seja original, merece ser publicado, pois trata-se de conhecimento científico genuíno. É claro que no quesito de originalidade deve se tomar cuidado com plágios, repetição de trabalhos sem sentido ou a famosa prática do salame científico.



A revisão de artigos de colegas deve se pautar pelo respeito, empatia e e consideração com o esforço que nossos companheiros estão fazendo para contribuir com o campo. Dessa maneira, eu recuso apenas os trabalhos que possuem inconsistências graves, ou mesmo uma qualidade documental muito baixa. A partir do momento que você decidiu que um trabalho merece revisão, o processo deve ser positivo e contributivo, com o devido respeito. Não é razoável tomar o tempo de um colega para revisar extensivamente um texto mal escrito. Se o texto possui um péssimo inglês ou muitos erros de escrita, ele deve ser devolvido com esse comentário.



Em relação a questões conceituais ou metodológicas, deve se considerar se elas são passíveis de solução ou de conciliação com o conhecimento vigente, e deve-se dar aos autores sempre o benefício da dúvida, que em outros termos é a chance de reformular, reconsiderar, ou remover parte dos resultados apresentados, sempre no limite do razoável.



A questão dos prazos e do tempo é fundamental. Apesar de ser um desrespeito muito grande com os autores que submetem artigos atrasar a entrega de um parecer, por outro lado o revisor está cedendo o seu tempo e expertise de graça. Dessa forma, embora a etiqueta nos diga que o ideal seja entregar a revisão o mais cedo possível e dentro do prazo, pequenos atrasos fazem parte da rotina. Geralmente as revistas dão duas semanas a um mês para emissão do parecer. Se o seu parecer estar demorando mais de um mês para ser emitido, é porque há algum problema e o editor deve ser contatado. Na minha experiência como editor, muitas vezes é extremamente difícil conseguir revisores. Já cheguei ao extremo de ter que convidar 80 diferentes pesquisadores para encontrar dois que se dispuseram a revisar um trabalho. E isso que o artigo era bom e interessante! Muitas vezes o revisor aceita e depois percebe que não consegue emitir o parecer, seja por problemas pessoais ou profissionais. A troca de revisores é um processo desgastante para o editor e que atrasa muito a avaliação de um artigo. Portanto aceite fazer a revisão de um artigo apenas se realmente tiver tempo disponível. E lembre-se: faça a revisão sempre com bons olhos e de bom coração. Somos todos colegas trabalhando juntos e a revisão por pares é uma das ferramentas mais importantes para o avanço científico, E justamente por isso deve ser feita com cuidado e com muito carinho.


Espero que as considerações tenham sido úteis. Um grande abraço a todos e bom fim de semana!

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