Os donos do Mosquito – parte 3
Retomando nossa discussão sobre estratégias e
prática de controle de vetores, visando o manejo integrado, hoje quero discutir
sobre outra das estratégias dominantes no controle de vetores que, apesar da
sua presença no campo dos especialistas há décadas, nunca vingou de verdade. Trata-se do
controle mecânico.
A lógica do controle mecânico é muito simples.
Todos os estudos a respeito comprovam o que o senso comum nos diz: o fator
limitante para a população de mosquitos é a abundância dos criadouros larvais.
A base biológica disso é que a maior parte dos nutrientes que o inseto adquire
para se desenvolver é obtida justamente na fase de larva. Isso é a regra para a
maioria dos insetos que sofrem metamorfose, ou muda completa (em jargão,
holometábolos).
Dessa forma, se eliminarmos os criadouros,
diminuiríamos enormemente a população de mosquitos. Parece muito simples, mas é
justamente essa simplicidade que revela o quão ineficazes temos sido como
sociedade, estado e população, em relação a esse problema. A abundância de
criadouros de larvas de mosquitos nas cidades brasileiras mostra que o manejo desses
insetos, muito mais que um problema de controle direto de um inseto, é um
problema urbanístico, ecológico, cultural, sócio-econômico. É absolutamente
claro que, se os criadouros são reservatórios de água, muitas vezes associados
a lixo, uma política adequada de resíduos e de saneamento básico resolveria o
problema.
Vou fazer um paralelo interessante. Nas casas
aonde morei na Inglaterra, ou nos EUA, não havia caixa d’água. Por que não há
caixas de água no telhado das casas nesses países? Em primeiro lugar, nas
regiões frias esse reservatório de água congelaria no inverno. Em segundo
lugar, as casas não tem caixa de água por que não precisam. Por que não falta
água, a rede de fornecimento funciona ininterruptamente. Em lugares altos,
como edifícios ou mesmo casas em lugares muito elevados, ainda persiste o
problema da pressão, mas em geral, a água chega em todos os lugares e não falta
nunca. Além disso, os vazamentos são mínimos.
É claro que as pessoas precisam beber água todo
dia, e não podemos esperar que o estado ou as suas concessionárias resolvam
esse problema da noite para o dia. Além disso, em regiões rurais ou áridas é
compreensível que se estoque água. Essa realidade acaba transmitindo o problema
para outra esfera, que é a particular, a casa de cada cidadão. E aqui surgem
dois problemas: o do limite entre o direito individual de propriedade e
privacidade do cidadão e o poder do Estado, por um lado, e a capacidade de
mobilização, mudança de hábitos e de comportamento do ser humano, por outro.
O primeiro problema é bastante áspero, num país
com histórico de regimes políticos ditatoriais e numa realidade extremamente
violenta, quase caótica como a que temos nas nossas cidades. Como permitir que
o estado possa inspecionar nossas casas, sem que haja abusos? Ou fraudes? Como
lidar com imóveis e propriedades abandonadas? Como responsabilizar quem coloca
em risco os vizinhos? E como proceder quando o culpado é o próprio estado?
O segundo é mais espinhoso ainda, mas
progressos têm sido feitos nessa direção. Eu pessoalmente fico um pouco
irritado quando o discurso responsabiliza exclusivamente as pessoas que não
olham os seus pratinhos de plantas, ou que não recolhem o lixo do seu quintal.
É confortável para o Estado colocar a culpa da epidemia de dengue na Dona
Maria, que não virou os pratinhos. E é absurdo fazer isso quando vemos que as
campanhas de conscientização, educação, ou mesmo as de controle são realizadas
apenas no verão, na iminência das epidemias. Por mais que o número de mosquitos
aumente no verão, eles também se reproduzem no inverno. E, além disso, a
criação de hábitos de limpeza caseira ou urbana é mais difícil de fazer com
esse componente de sazonalidade, quase que aleatório.
Também precisamos considerar a enorme
abundância de criadouros que não estão sob responsabilidade direta das pessoas.
Galerias pluviais, por exemplo. Depósitos de lixo. Falar sobre o lixo no Brasil
é desanimador. O destino que se dá ao lixo em boa parte das cidades é o pior
possível e, além de ser uma oportunidade de negócios ambiental, econômica e tecnologicamente
compensadores que é jogada fora, ao mesmo tempo se dá a chance para a manutenção
de um bom estoque de ovos e larvas de mosquitos para a próxima estação.
Uma iniciativa louvável que vem sendo tomada no
Rio de Janeiro, e que merece todos os louvores, é a campanha DEZ MINUTOS CONTRA
A DENGUE. Ela preconiza que o tempo que as pessoas gastam na prática, para se
proteger de mosquitos em casa é de dez minutos por semana, o que vale muitíssimo
a pena se você mora em lugar endêmico para Dengue, Zika e Chikungunya. A
campanha tem muitos méritos, mas um que quero destacar aqui é transformar o
problema em algo palpável para o cidadão comum. A linguagem é de fácil acesso e
todo mundo sabe o que são dez minutos. Seria importante que ela fosse estimulada
constantemente, e não apenas ao sabor das intempéries pluviais e epidemiológicas.
Além disso, também temos uma questão lógica,
que perpassa toda a discussão nesse campo. Uma coisa é evitar que existam
criadouros, que é uma ação preventiva. Outra coisa é eliminar criadouros que
já existem. E essas duas coisas precedem o extermínio direto de mosquitos,
sejam larvas ou adultos. Ou seja, estamos falando de prevenção, em vez de
reação. Não é possível fazer prevenção sem vigilância, e nesse ponto falhamos
fragorosamente, nas mais diferentes frentes. Vigilância é algo que não chama a
atenção se for bem feito, não dá voto e ninguém cobra por que não entende direito como funciona. As
pessoas reagem muito mais fortemente ao fumacê, ou a qualquer iniciativa de
combate direta e visível ao problema, do que a um trabalho de rotina cujo
objetivo é justamente evitá-lo, e que por isso se torna invisível. Nesse aspecto, precisamos trabalhar politicamente,
e deixar de ser uma sociedade reativa, para sermos preventivos e prospectivos.
Seja como for, todos os fatores acima apenas reforçam que o controle físico não
trará sozinho a resposta para o problema, e que o fundamentalismo às vezes
quase que religioso de seus defensores precisa ser superado para que consigamos
compor uma solução conjunta, aonde essa estratégia seja uma ferramenta complementar,
e não exclusiva às demais.
Por outro lado, se sabemos que a presença de
criadouros tem a ver com a qualidade das moradias, do seu entorno e dos
serviços básicos que ali chegam, a intervenção que deveria ser realizada para o
controle de mosquitos não deveria ser urbanística? Nesse sentido, por mais que
o controle de mosquitos esteja na esfera pública ou privada, a discussão de
planos de longo prazo, abrangentes e integrados, deve estar a cargo do Estado.
E não adianta colocar tropas para matar mosquitos a bala, ou para visitar a
casa das pessoas. É preciso inteligência, cada vez mais inteligência humana, pois,
como num jogo de xadrez, sem antecipar o movimento dos mosquitos estaremos
sempre na iminência de um xeque-mate, como ocorreu com a epidemia de Zika.
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