A digestão de insetos – parte 8



A segunda grande questão a respeito da digestão de insetos, que intrigou a comunidade de pesquisadores, diz respeito à eficiência desses organismos na conversão do alimento em reservas energéticas e massa corporal. É muito provável que não exista paralelo no reino animal. Os exemplos são abundantes, e a transposição para a escala dos seres humanos ressalta ainda mais como a capacidade desses biorreatores é assombrosa.

Por exemplo, se olharmos para os insetos sugadores de sangue, é comum que eles sejam capazes de ingerir dez vezes o próprio peso em sangue. Um mosquito ou barbeiro, após sugar sangue, mostra uma impressionante distensão abdominal e até muda de cor – para vermelho, claro! Se formos transpor a escala, é como se eu (ser humano do sexo masculino, de meia idade) fosse a um restaurante e fizesse um prato de 700 Kg de comida! E esses insetos, como se a quantidade de sangue ainda não fosse espantosa, ingerem tudo isso em alguns minutos... Para completar a maravilha, um mosquito digere todo esse sangue em 2 ou três dias. A digestão de um barbeiro é um pouco mais lenta, e demora 1 ou 2 semanas. Seja como for, são máquinas de concentrar, processar e absorver nutrientes altamente eficientes!

Insetos que se alimentam de plantas, como as lagartas de mariposa ou de muitos besouros, são igualmente fantásticos. Uma lagarta de mariposa recém nascida, com 10 mg de peso, aumenta de tamanho de dez a vinte vezes em uma semana, comendo ininterruptamente. Um ser humano, com um peso de 3 a 4 Kg ao nascer, demora dez anos para chegar a 40 Kg!

Parte dessa eficiência, em alguns casos, decorre parcialmente de uma enorme especialização em um único tipo de alimento, outra coisa que parece impensável quando comparamos como muitos insetos vivem aos nossos hábitos de vida. É comum para um inseto nascer na comida, e viver dentro da comida praticamente a vida toda. O ovo de uma lagartinha comedora de couve, por exemplo, é colocado nessa planta pela fêmea adulta. A lagartinha nasce nessa planta, e come apenas couve o dia todo, todos os dias da sua vida. Algo parecido acontece com os insetos sugadores de sangue, os quais se alimentam apenas de sangue em um determinado período de sua vida.

Isso me faz lembrar de um dos maiores equívocos que podemos cometer ao analisar a natureza, que é o de simplificar os fatos, ou usar parâmetros humanos, muitas vezes subjetivos para descrever os fenômenos. Quem trabalha com insetos vetores, sugadores de sangue, está acostumado a ver esse tipo de armadilha, que aparece de muitas formas. Muita gente acha que o mosquito é só a fêmea sugadora de sangue apenas, quando na verdade as fêmeas também se alimentam de açúcar (geralmente néctar de flores), e os machos nunca sugam sangue de ninguém. Também é comum esquecer que as larvas e os adultos (com um estágio de pupa no meio) são fases de vida diferentes do mesmo animal.

O outro perigo é o da dessensibilização. Nós nos acostumamos com as coisas do jeito que são, e acabamos deixando de perceber como elas são maravilhosas de fato. Nesse sentido, vale sempre a pena observar as coisas com calma, paciência, e um olhar descompromissado. Nem tudo tem que ser útil o tempo todo, ou tem sempre que estar no seu devido lugar. Os cientistas às vezes observam a natureza pela mesma razão que moveria qualquer outro ser humano: a beleza, a curiosidade, a surpresa, o assombro. Nós estamos rodeados de maravilhas o tempo todo, sejam elas bolsinhas de sangue voadoras, sejam elas escavadores vorazes de túneis nos materiais mais duros e refratários.
A maravilha que é a capacidade de processamento do alimento em insetos também está relacionada à especialização que vemos nas suas diferentes fases de vida. A maior parte dos insetos realiza metamorfose, ou seja, têm estágios larvais (lagarta), que no fim do processo viram um casulo (pupa) de onde emerge um adulto (com asas, macho ou fêmea). Os estágios imaturos (larvas) nesses insetos geralmente são extremamente especializados na digestão, e comem o tempo todo. O intestino corresponde à grande parte do corpo, sendo de longe o maior órgão desses animais. As lagartas em geral, relembrando uma frase célebre do querido e excepcional Prof. Walter Terra da USP, são ¨intestinos com patinhas¨ e os adultos, ¨gônadas com asas¨.

Seja como for, estudos realizados por inúmeros grupos de pesquisa ao longo do século XX revelaram a existência e o funcionamento das bases estruturais para essa eficiência digestiva tão grande dos insetos. Pesquisadores brasileiros foram fundamentais para essas descobertas e, nas próximas postagens, vou tentar desvendar um pouco desses mistérios e aprofundar as duas grandes perguntas que apresentei nos dois últimos textos: 1. Como é que insetops conseguem digerir qualquer coisa? 2. Como a digestão de insetos é tão eficiente? Espero que tenham gostado e até o próximo texto!

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