A digestão de açúcares e o futuro da economia mundial
Hoje eu quero comentar uma das mais recentes publicações do nosso
laboratório. É um trabalho que foi publicado no periódico internacional Biotechnology
for Biofuels e que foi realizado pela excelente aluna de pós-graduação Samara
Costa.
A
história desse trabalho é muito divertida do ponto de vista pessoal. Há muitos
anos atrás, fui procurado pela Samara no meu gabinete no Instituto Oswaldo Cruz.
Ela estava muito aflita porque tinha acabado de passar no concurso público para
a Fiocruz, mas ainda estava fazendo o mestrado na Universidade Federal de
Viçosa. A pós-graduação da UFV havia lhe dito que ela poderia continuar fazendo
mestrado, desde que tivesse um orientador no Rio de Janeiro. Ela então estava
me procurando para saber se eu poderia assumir o papel de co-orientador. Eu respondi que dependia do assunto do seu mestrado, pois
afinal de contas, não poderia orientar uma dissertação sobre qualquer assunto,
teria que ser na minha especialidade. Aí aconteceu uma coisa muito engraçada. A
Samara pegou o seu caderno de laboratório e começou a me mostrar os seus dados.
Ela estava trabalhando com beta-glicosidases de um fungo, purificação dessas
enzimas e caracterização cinética. Não consigo imaginar nada mais próximo
daquele momento, em que a Samara me mostrava os gráficos, resultados e considerações
sobre os experimentos no seu caderno, do que quando oferecemos um daqueles
pirulitos grandes, doces e coloridos de parque de diversão, para uma criança de
seis anos. Aceitei na hora!!!
Começamos
a trabalhar quase que imediatamente, e embora para ela tenha sido muito difícil
conciliar o trabalho com o serviço na Fiocruz (ela estava lotado no setor de
controle de qualidade de Bio-Manguinhos) com as atividades de estudante, no
final do processo ela defendeu uma dissertação absolutamente impecável. Tenho
excelentes recordações também desse momento. A defesa foi em Viçosa. Eu nunca havia ido para aquela cidade, muito menos conhecido o
Campus lindíssimo da UFV. Conheci pessoas maravilhosas, incluindo a professora
Valéria Montese, que foi a orientadora principal da Samara e a mentora do
projeto. Tenho duas recordações curiosas dessa defesa. A primeira é que ela se
realizou em uma sala, com uma grande mesa aonde se colocaram apenas a aluna e a
banca. Achei aquilo muito curioso, pois estou costumado às defesas em grandes auditórios,
aonde se reúnem às vezes um grande público e familiares, amigos e colegas.
Perguntei porque a defesa seria realizada em uma sala fechada, apenas com a
nossa presença, e me responderam que era o rito naquela pós-graduação. Embora
naquele momento tenha achado um pouco curioso, hoje em dia sou bastante
favorável a realização de defesas de trabalhos de conclusão em salas pequenas.
Uma situação recorrente no nosso Instituto são defesas de doutorado ou mestrado
em grandes auditórios ocupados apenas por meia dúzia de pessoas. Enfim, essa é outra
discussão... A outra recordação curiosa que tenho dessa defesa é que meu carro
quebrou em Viçosa! Foi um evento bastante singular, porque a caixa de câmbio do
carro apresentou defeito, e o único mecânico da cidade não tinha peças para
realizar o conserto. As opções eram esperar 15 dias até que a peça chegasse, ou
dirigir até o Rio de Janeiro sem utilizar a marcha ré. Essa foi uma das viagens
de automóvel mais inesquecíveis que já realizei...enfim, cheguei no Rio de
Janeiro vivo, com a sensação de missão cumprida, um carro para consertar um
artigo para escrever. O carro ficou pronto em uma semana, mas o artigo…demorou
anos para ficar pronto. Começamos a trabalhar em resultados e análises
complementares, e tivemos muita dificuldade na identificação proteômica das
enzimas purificadas. No meio do caminho tivemos um problema, descobrimos uma
mudança na identificação da linhagem de fungo com que estávamos trabalhando, o
que alterava completamente a análise proteômica que citei. Nesse meio tempo, a
Samara entrou no doutorado, passou a concentrar nos estudos em outro modelo e o
tempo passou. No ano passado, retomamos a análise desses dados, a escrita desse
artigo, e finalmente conseguimos organizar tudo para submeter o manuscrito. E
nesse momento aconteceu mais uma coisa singular, que me propiciou um
aprendizado que espero que fique para o resto da vida. Como esse artigo demorou
muitos anos para ficar pronto, e ainda tivemos as reviravoltas da identificação
do fungo e na análise proteômica, eu finalizei o
manuscrito e submeti para a revista o mais rápido que pude, sem nenhuma
paciência. Avisei os co-autores da submissão e disse que poderíamos fazer
alterações na fase de revisão...e aí está o erro que pretendo nunca mais
cometer no novamente. Com toda razão, tomei uma bronca do querido professor Richard
Valente, da Fiocruz. Como havíamos submetido o artigo, incluindo análise proteômica,
sem a reanálise e o crivo do grupo deles? Havia a possibilidade real de que
análise que consideramos finalizada estivesse incorreta, e a identificação das
enzimas não procedesse. Foi uma situação muito constrangedora, da qual me
arrependo muito. Após algumas reuniões de rediscussão do artigo, e análise dos
resultados, conseguimos chegar a um resultado razoável que foi aceito por
todos. E, para nossa grande sorte, os revisores e o editor da revista aceitaram
o nosso pedido de desculpas e a substituição das análises. A versão final do
manuscrito realmente ficou muito boa, e eu me orgulho
muito desse trabalho.
Falando
um pouco agora do conteúdo propriamente dito, esse artigo é sobre as beta-glicosidades
de um fungo filamentoso, o Penicillium citrinum.
A grande questão é que há inúmeros pesquisadores do mundo todo estudando formas
mais eficientes de transformar resíduos de celulose em açúcares fermentáveis. A
celulose é constituída de longas cadeias de glicose, mas para que essa glicose
seja liberada e possa ser usada em sistemas de fermentação, é necessária ação
de enzimas celulásicas. A fermentação da glicose oriunda da celulose visa,
entre outras aplicações, a produção de etanol combustível. Dessa maneira, se
tivermos sistemas eficientes de conversão dessa celulose, a nossa produção de
Bioetanol poderia praticamente duplicar de eficiência. As consequências
econômicas desse processo tendem a ser magníficas, pois não só teríamos um
combustível ecológico mais barato como também encontraríamos utilidade nobre
para o maior resíduo da safra da cana, o bagaço. Um grande problema científico
encontrado nessa linha de trabalho é que a maioria dos coquetéis comerciais de
enzimas utilizados para esse fim são pobres em beta-glicosidades, ou tem
enzimas que são inibidas pelo produto da final da degradação, a glicose. Para
que a celulose seja degradada é necessária a ação conjunta de diferentes
enzimas. A celulase cliva as regiões internas das cadeias, e enzimas como celobiohidrolases
removem dissacarídeos das pontas produzidas pela celulase. O dissacarídeo, celobiose,
tem que ser então degradado por beta-glicosidades para que se forme a glicose.
Assim sendo, os coquetéis comerciais com pouca Beta-glicosidade, ou com uma
atividade que é inibida nas condições de reação não tem a eficiência desejada. É
nesse contexto que muitos grupos de pesquisa estão procurando novas enzimas,
novas beta-glicosidades que possam cumprir esse papel. Nós encontramos duas beta-glicosidades
no fungo Penicillium citrinum, fomos
capazes de purificar essas enzimas, e caracterizar elas cinéticamente em detalhe.
Uma coisa interessante que descobrimos é que essas duas beta-glicosidades,
embora produzidas pelo mesmo fungo, têm características completamente
diferentes. Além disso, uma dessas enzimas nunca havia sido descrita nesse
grupo de fungos. Essas duas enzimas têm propriedades cinéticas muito interessantes,
com possíveis aplicações em diferentes tipos de indústria, como a produção de
vinho. Além disso, elas são capazes de complementar a atividade do coquetel de
enzimas comercialmente mais utilizado, e tem atividade sobre diferentes tipos
de biomassa, como bagaço de cana, fibra de coco e fibra de bananeira . Acredito
que neste trabalho pudemos trazer não só algumas novidades teóricas no campo da
degradação de biomassa, mas perspectivas futuras de aplicação do fungo que foi
isolado brilhantemente pela equipe da UFV. Espero que no futuro possamos
continuar colaborando com grupos tão bons, e que as lições que aprendi ao longo
desse percurso rendam frutos. Espero que tenham gostado da história! Abaixo
seguem links para acesso e download do artigo publicado (grátis). Um grande
abraço e uma ótima semana a todos!
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