Cartas do Pai de Alceu Amoroso Lima: uma breve resenha
Tive a oportunidade
recente de ler o primoroso livro de autoria de Alceu Amoroso Lima, ¨Cartas do
Pai¨. Ele não é propriamente um livro, mas uma coletânea de cartas que ele
escreveu ao longo dos anos para sua filha Maria Thereza. As cartas foram por
ela cuidadosamente guardadas no arquivo do mosteiro de São Bento, em São Paulo,
e foram transcritas e revisadas em uma iniciativa patrocinada pelo Instituto
Moreira Salles. Esse volume trata de cartas escritas entre os anos de 1956 até
1969.
A primeira qualidade que
sobressai no livro é a sua pungência. As duas primeiras cartas, que definem e
são a razão de ser do livro inteiro, são a de despedida de Alceu para a filha,
que estava indo em direção à clausura para se tornar freira, e a de
recomendação de Alceu para a Madre Superiora do convento, pedindo-lhe cuidado
com a filha. É difícil ler estas cartas sem ser tomado de forte emoção. Poucas
vezes o amor entre pai e filhos teve uma expressão tão clara e tão autêntica, e
a tristeza da despedida e da saudade uma expressão tão retumbante. A reação
instintiva é lembrar imediatamente dos entes queridos, sejam eles presentes ou
ausentes, e sentir a aflição e leveza da finitude da vida.
Outro fato que me chamou a
atenção é a qualidade da comunicação. Nas cartas Alceu discorre sobre as coisas
do dia-a-dia, fatos políticos e sociais de dimensão nacional e internacional e,
sobretudo, eventos do espírito – pensamentos, sentimentos, reflexões e assim
por diante. Muitos são de natureza religiosa, mas independentemente da fé a
troca é absolutamente admirável, complexa, profunda. E é invejável a
oportunidade de confidência de praticamente tudo. Fico a pensar se isso não
ocorre com frequência nos dias de hoje por que não há tempo, ou por que os meios
de comunicação nos forçam à escrita rápida e pouco reflexiva, ou por que um dos
sintomas do nosso tempo é o individualismo disfarçado. Mas pode ser que as
coisas tenham sido assim sempre, e que o diálogo entre Alceu e filha seja uma
coisa mesmo singular. Seja como for, faz refletir em como é difícil escrever e,
mais ainda, difícil encontrar quem leia de verdade o que a gente escreve hoje
em dia. Mas de fato a escrita e a reflexão nunca foram esporte popular, muito
menos no Brasil, que continua uma terra de iletrados.
Uma questão técnica que me
faz pensar é que escrever à mão ainda é mais fácil e intuitivo do que à máquina
para a maioria de nós. Os textos de Alceu foram sempre datilografados por sua
esposa, e mesmo estas cartas foram transcritas por outras pessoas. O quanto
manteremos de espontaneidade com o fim da escrita à mão? O quão produtivo seria
o escritor se fosse obrigado a transcrever os seus textos, e seria mantida a
mesma qualidade caso a escrita fosse à máquina? O que o progresso técnico nos
trouxe em termos de qualidade literária?
Nesse ponto vale sempre estar atento que é ingênuo acreditar que o
progresso técnico em meios melhorará a nossa reflexão e a nossa escrita. E isso
só ressalta a necessidade de estudos literários, filosóficos e históricos sobre
o ato de escrever, em todas as suas formas e vertentes.
A qualidade da escrita é
outra coisa admirável nesse livro. Há frases, trechos, cartas inteiras
absolutamente belos. Encontra-se a beleza na forma, pela escolha e precisão das
palavras, e no conteúdo, pela profundidade e importância dos temas. E há temas
que, quando não parecem importantes, são elevados pela qualidade do escritor. Coisas
como a preguiça, o papel e as canetas que se usa para escrever, ganham beleza e
significado. E essas cartas não deixam de ser um aviso de que somos nós que
damos sentido às coisas e aos fatos da vida, sejam eles grandes, pequenos,
corriqueiros ou insólitos.
A característica que
talvez mais chame a atenção para esse livro nos dias de hoje é a sua
historicidade. Um leitor incauto se deparará com discussões sobre a renúncia de
Jânio Quadros, a atuação de Carlos Lacerda, o papel de Jango, e o desenrolar e
repercussão do golpe militar de 1964 na política, cultura e sociedade
brasileira. A atualidade dos comentários revela como a história do país e do
mundo se repete em tantos aspectos, talvez por que por mais que o mundo mude, a
natureza humana não mudou tanto assim. É sintomático ver Alceu reclamando que
os discursos de 1960 são os mesmos de...1910! E, quando leio as citações de
1960, percebo que há muita coisa parecida em termos de idéias, e muitas vezes
até na forma das expressões, com o que se diz em 2017. O progresso técnico, se
também não se reverteu em progresso literário, também não se reverteu em
progresso social ou político. O que me faz pensar que até a natureza e
aplicação do conceito de progresso seja diferente nessas áreas.
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