O melhor exame de qualificação de todos os tempos!



Há cerca de um mês, participei de uma exame de qualificação excepcional na Universidade Federal Fluminense. Preferiria ter escrito esse texto antes, por que em função da temporalidade dos eventos é melhor escrever com a cabeça fresca. Mas de qualquer forma, vale a pena revisitá-los, pois os acontecimentos relacionam-se a conceitos importantes na formação de alunos em cursos acadêmicos, e na área especifica dos estudos, que é a interação parasito-inseto vetor. 

Há inúmeros formatos para os exames de qualificação, e cada programa pós-graduação determina o seu. Há qualificações que são feitas mais para o final do curso, há qualificações que são feitas mais próximas do início, mas a maioria é feita no meio do processo de um doutoramento, em formato de apresentação para uma banca. Dessa maneira, a pós-graduação consegue ter uma ideia das possibilidades de defesa da tese no prazo, da publicação do trabalho desenvolvido e, o que é mais importante, da maturidade e desenvolvimento do aluno. Sempre há aquela discussão sobre o produto e o processo. É necessário olhar para os produtos, sejam eles artigos ou um doutor em ciências com independência e qualidade mas, além disso, no processo, precisamos considerar a natureza do aprendizado desenvolvido no período e a orientação recebida. 

Na UFF conheci um formato de exame de qualificação um pouco diferente. Acho que já tinha participado de exames dessa natureza, mas com uma frequência baixa. Geralmente assistimos a uma apresentação sobre os dados gerados pelo aluno no seu projeto, mas no Programa de Biotecnologia da UFF o aluno apresenta uma revisão científica sobre um assunto relacionado à sua tese, e faz uma apresentação sobre esse artigo. Confesso que no início achei um pouco diferente...talvez eu esteja muito condicionado à lógica da tese como produto final.

Para minha surpresa, tivemos um desenrolar especialmente feliz, tanto em termos de produtos como de processo. A doutoranda, Mestra Débora Passos de Matos, e o seu orientador, Prof. Marcelo Salabert Gonzalez, apresentaram uma excepcional revisão sobre adesão de parasitos da espécie Trypanosoma cruzi no intestino do seu vetor, o barbeiro Rhodnius prolixus. Além de ter o grande prazer de ver uma excelente aluna defendendo o seu trabalho, e poder acompanhar e ajudar o Marcelo, que é sem sombra de dúvida o melhor parceiro que conheci no Rio de Janeiro, tivemos uma sessão de debates científicos memorável. Poder discutir esse tema com os brilhantes Professores Denise Feder, Patricia de Azambuja, Cícero Brasileiro e Nicolas Carels foi mais do que um privilégio, foi uma catarse.

A adesão de parasitas é um fenômeno pouco estudado, sendo uma das melhores histórias científicas que tive a sorte de conhecer e parcialmente acompanhar no nosso laboratório na Fiocruz. É uma linha de investigação que foi iniciada há anos atrás pelo saudoso Dr. Elói Garcia e pela brilhante Dra. Patrícia, com a participação do Prof. Marcelo, na época como aluno. É um processo fundamental no ciclo de vida do parasita. Devemos lembrar que estamos falando de um parasita intestinal que é ingerido na alimentação. Se o parasita não sofrer transformações e adaptações específicas, receberá o mesmo tratamento do resto do alimento, ou seja, digestão, absorção de suas moléculas pelo inseto e excreção dos seus restos nas fezes. 

Assim sendo, a adesão está associada a processos fundamentais de diferenciação do parasita. Uma série de patógenos intestinais passa pelo mesmo tipo de interação, e muitas vezes a adesão ao epitélio intestinal do microrganismo determina seu efeito sobre o inseto. A revisão feita pela Débora mostra claramente que a adesão do T. cruzi é um fenômeno multifatorial, conservado, e dependente de uma série de fatores que se sobrepõe em termos de função.

Esse tipo de redundância funcional é típico de processos fisiológicos fundamentais para qualquer organismo. Em outras palavras, nesses casos o processo é tão importante para o desenvolvimento ou sobrevivência, que se uma das estratégias falhar pode-se contar com as outras. E esse parece ser claramente o caso. Uma coisa muito bonita de observar no processo de revisão feito pela Débora é que, além de deixar isso muito claro de maneira ímpar e original, ele apontou aspectos básicos que poderão ser explorados em caminhos e direções futuras para os estudos no tema. Esse é o papel mais importante que pode ter uma revisão. É importante destacar isso, por que nos últimos anos temos sido inundados por revisões caça-níqueis, muitas vezes com poucos anos de diferença em relação a apanhados anteriores, aonde o único objetivo claro dos autores é de publicação em revista internacional para efeitos de currículo. 

Em Biologia, tudo acontece por acaso, mas nada acontece sem uma razão. A impressão que tive durante a apresentação e as discussões é que durante o processo de adesão à superfície intestinal o parasita está fugindo de processos danosos, e se aproximando de fatores que são benéficos para o seu desenvolvimento. Isso tem uma conexão muito bonita com um dos mais importantes conceitos da fisiologia digestiva em insetos, que é a micro-compartimentalização do processo digestivo, que muitas vezes independe da existência de barreiras ou marcos anatômicos. Os compartimentos são dinâmicos, e muitas vezes surgem como uma composição de gradientes moleculares com sequência temporal definida. 

É muito comum uma separação entre o conteúdo intestinal e as células digestivas do inseto. Em termos coloquiais, se formos olhar a região mais central do lúmen do intestino do barbeiro, "o pau está comendo", e o parasita precisa fugir disso. O que o parasita está "vendo"? Eu consigo pensar em três fatores importantes: o primeiro são as enzimas digestivas, que se concentram em torno dos seus substratos, as moléculas poliméricas do alimento. No caso do barbeiro, são eminentemente proteases que têm grande afinidade pelas moléculas de proteínas, o que naturalmente resulta numa concentração maior destas no lúmen. E proteases podem ter grande ação lítica sobre microrganismos, especialmente parasitas, o que sempre faz pensar numa questão básica da biologia do sistema, que é por que cargas d'água o parasita não é simplesmente digerido pelo inseto vetor. Talvez uma razão seja que ele ¨fuja¨ das enzimas... 

O segundo fator seria a exposição a moléculas tóxicas geradas ao longo do processo de digestão. A mais estudada é o heme, que é uma molécula pró-oxidante liberada durante a digestão da hemoglobina. O heme pode gerar espécies reativas de oxigênio que são altamente deletérias para o T. cruzi. Além disso, são conhecidos alguns peptídeos derivados da digestão da hemoglobina que tem ação antimicrobiana, e dessa forma poderiam também atuar sobre o parasita. 

Também há uma série de moléculas antimicrobianas que são produzidas pelo inseto para controle de patógenos e da microbiota intestinal, composta majoritariamente por bactérias. A microbiota nesse contexto é muito importante, pois ocorre uma multiplicação enorme de bactérias no intestino após a ingestão do sangue. E muitas dessas bactérias, especialmente a Serratia marscescens, tem grande atividade contra o parasita. O que faz todo o sentido, se pensarmos que esses microrganismos estão competindo entre si por espaço e comida. Dessa forma, há uma enorme necessidade por parte do parasito de fugir desse conturbado interior do trato digestivo. 

Agora, e os processos benéficos? Voltamos à grande questão da compartimentalização do processo digestivo. O que acontece na proximidade das células intestinais? Outro dos mecanismos que é utilizado para compartimentalizar a digestão de insetos é a presença de membranas que dividem o interior do intestino. No caso de Hemípteros isso é representado pela membrana perimicrovilar. Além disso, é comum a fixação de proteínas na membrana dos enterócitos, por peptídeos hidrofóbicos, âncoras do tipo GPI ou outros tipos de proteínas integrais ou parciais de membrana. 

Essa compartimentalização resulta em grande eficiência nos passos sequenciais da digestão em insetos, concentrando na superfície das células intestinais os últimos passos da digestão do alimento. Os principais componentes da dieta do barbeiro são proteínas, o que significa dizer que a digestão final é realizada principalmente por enzimas como dipeptidases e aminopeptidases, que liberam aminoácidos livres. Esses são captados por transportadores na superfície dos enterócitos. Assim, é razoável pensar que a concentração de aminoácidos livres pode ser maior na superfície das células intestinais, ou que haja um gradiente de concentração destes do epitélio para o lúmen, já que no lúmen são teoricamente gerados apenas peptídeos de tamanho maior pelas peptidases de digestão inicial.

É razoável imaginar que o parasito seja sensível a isso, visto que muitos aminoácidos são essenciais para o seu metabolismo, e que seu desenvolvimento depende de captação dessas moléculas a partir do meio externo. Dessa forma, o parasito estaria se beneficiando também de uma possível fonte nutricional.

Após uma discussão tão rica, com tantas ideias novas, eu realmente não tenho como negar a excelência desse processo de qualificação. Não tenho dúvidas de que Débora será uma bem sucedida futura doutora, e espero ver sua revisão publicada em breve. Também fica uma grande vontade de continuar explorando essas ideias com os maravilhosos amigos e parceiros da UFF.

Fica aqui a sugestão para os programas de pós-graduação de um formato alternativo que, se bem conduzido, é interessantíssimo, não só para o aluno como também para a comunidade científica. Espero que tenham gostado, e fiquem à vontade para colocar comentários ou fazer perguntas. Um grande abraço a todos!


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