Fake news: a saúva do saber


Há poucos problemas tão recentes e tão desafiadores no mundo atual quanto a profusão de notícias falsas. A própria expressão ¨notícia falsa¨ me causa estranhamento, pois fui criado em um tempo no qual, por definição, uma notícia é algo verdadeiro. Seja como for, o mar de desinformações, lorotas, acusações falsas, histórias absurdas e gozações non sense é inegável e, por incrível que pareça, é mais influente do que muitos meios de comunicação oficiais.

A desinformação, que antes era algo difuso, que poderia ser em muitos casos ser categorizado apenas como falta de conhecimento sobre algo, virou um setor econômico, político, social, extremamente ativo - e para o qual, temo dizer, nenhum de nós estava verdadeiramente preparado. Tanto é que decisões majoritárias foram tomadas no nosso país, com consequências gravíssimas para a população, com base em uma rede de distribuição de informações que são, simplesmente, mentiras. Os exemplos são inúmeros, mas vão desde a absurda terra plana até tratamentos para doenças que não merecem nem esse nome, pois são inúteis.

O impacto da desinformação sobre os inúmeros setores da sociedade é imenso, e vai desde a saúde pública até aspectos básicos da economia. Uma sociedade desinformada, ou desligada da realidade, não consegue resolver problemas de base coletiva. E não é preciso destacar que o nosso país não consegue resolver em definitivo praticamente nenhum problema desse tipo. As chagas do Brasil são quase as mesmas do Império...e há poucos sinais de melhora no horizonte.

Algumas iniciativas, é verdade, vêm sendo tomadas por diferentes instâncias detentoras de conhecimento. Inicialmente, destaco a paciência e a coragem que muitos colegas têm demonstrado nas redes sociais, junto ao público, nos círculos íntimos e alargados de familiares, amigos e conhecidos. É preciso muito paciência para explicar muitas vezes a mesma coisa, pois as notícias falsas, por serem tão apelativas, grudam que nem chiclete, e voltam várias vezes para atormentar. E é preciso coragem para defender a verdade em um momento no qual a mentira tem uso político e institucional, dando margens a perseguições, insultos e agressões.

Também há iniciativas mais organizadas, reunindo cientistas e outros setores da sociedade que têm a mesma percepção - de que as fake news estão acabando com o país. Destaco o Instituto Questão de Ciência, presidido pela brilhante Dra. Natália Pasternak, da USP. Também há o movimento Cientistas Engajados, liderado pelos valentes Drs. Mariana Moura e Walter Neves, tentando aproximar os cientistas da política. Temos brilhantes divulgadores científicos, como o espetacular Dr. Átila Iamarino. Além de movimentos nas sociedades científicas, como a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entre outros.

Há iniciativas institucionais por parte do Judiciário, como os inquéritos no Supremo Tribunal Federal, e no Legislativo, como o projeto de lei contra as fake news, além de movimentos parlamentares de apoio à produção e valorização do conhecimento científico. Também foram realizadas ações importantes e contundentes por parte de todos os meios de comunicação, desde redes de televisão, rádios e jornais, tentando trazer conhecimento correto para a população. Sem falar nas já consolidadas plataformas de checagem de dados, geralmente associadas aos mesmos meios de comunicação. 


É importante destacar que, enquanto não houver uma política séria de responsabilização sobre fake news, a disputa é absolutamente desigual, no campo dos princípios. Eu não me conformo sempre que vejo alguém postando ou repassando mentiras ou bobagens, sem sofrer nenhum tipo de sanção. As pessoas deveriam perceber o mal que estão causando à sociedade ao fazer isso. Não acredito que isso virá na forma de sensibilização, pois divulgar bobagens sensacionais sempre será mais recompensador do ponto de vista social, psicológico e econômico do que divulgar a verdade chata, lenta e difícil dos fatos e análises científicas. O mínimo que deveria ser feito é uma suspensão virtual, mesmo que curta, para quem divulgar ou amplificar mensagens claramente inverídicas ou criminosas. 

Chego, dessa forma, à pergunta que não quer calar: estão, de fato, servindo para alguma coisa todas essas iniciativas? Qual é o impacto? Às vezes eu tenho a desesperançada impressão de que se trata de um canto para convertidos, chuva no molhado. E, se formos olhar o resultado prático, pelo menos em termos de mudanças nas políticas públicas no enfrentamento da COVID-19, ou mesmo na percepção geral da população sobre questões técnicas básicas ou fundamentais, o saldo é negativo ou zero. Pode-se ir mais longe: quantas pessoas deixaram de acreditar que a terra é plana por causa dessas iniciativas? Ou que brancos são superiores? E em seguida, temos a pergunta de um milhão de dólares (ou de vidas): por que não estão funcionando? Ou não parecem estar? Será apenas uma questão de visibilidade?

Existe a hipótese interessante de que dados técnicos não servem para esse tipo de discussão e convencimento. Uma série de estudos mostra que a identificação da maioria das pessoas por idéias ou enunciados é sentimental, passional. E que, portanto, para desenvolver argumentos mais convincentes devem-se trabalhar os aspectos ¨não-científicos¨ da comunicação.

Há também a difícil questão de que, para que seja possível ter análise crítica sobre os fatos, é necessário um mínimo de entendimento. E, numa sociedade aonde a maioria da população não domina conceitos básicos de lógica, proporção, porcentagem ou probabilidade, é inútil apresentar evidências e demonstrações científicas. Uma corrente desse pensamento acredita que, se o conhecimento for traduzido para exemplos o mais cotidianos possíveis, talvez haja esperança. Mas há limites, pois nem todo conhecimento é passível de simplificação em níveis extremamente básicos.

O debate mais difícil de todos, a meu ver, é em relação à questão religiosa. A sociedade brasileira precisa discutir seriamente, algum dia, o papel que a religião tem e terá na nossa organização e políticas públicas. Muito da aceitação passiva de abobrinhas e da refutação dos argumentos científicos tem a ver com o alinhamento a um grupo de fé. Esse é um debate muito espinhoso, mas inevitável. Há limite para tudo, até para a liberdade de crença, que é o bem público e a ameaça ao futuro da nossa sociedade. Está na nossa constituição, e na lei de todos os países democráticos.

Contudo, uma coisa que gostaria de destacar é a questão tecnológica. Com o devido respeito e adoração aos heróis da causa da ciência, a impressão que tenho é de que todas as estratégias acima, por melhor conduzidas e sérias que sejam, são anacrônicas. Enquanto não pensarmos em uma plataforma de divulgação científica que chegue a 200 milhões de celulares, estamos perdendo o debate e jogando tempo fora. Correntes políticas fizeram isso com orçamentos e equipes ínfimas. A questão é de estratégia e de tecnologia. Se há um gabinete do ódio, por que não pode haver um gabinete da ciência? Não é por falta de engenheiros e de conhecimento técnico que isso não pode ser feito. Se podem ser criados bots para divulgar mamadeira de piroca, ou para teleatendimento, por que não podem ser criados bots para divulgar que vacinas salvam vidas? Ou campanhas de vacinação?

Eu vejo dois tipos de problemas nesse caminho. Um inicial é a questão ética. Cientistas baseiam-se na premissa da busca da verdade. Como defender essa motivação com base em falsas premissas? É quase um reductio ad absurdum. Nesse sentido, talvez precisemos atualizar o debate ético-filosófico e pensar mais nas consequências. Alinharmos mais com Stuart-Mill e menos com Kant. Mesmo por que o mundo mudou, radicalmente, e as próprias premissas talvez não sejam mais as mesmas. O meu medo, nesse sentido, é quais consequências isso poderia trazer para a ciência propriamente dita. Afinal, os vasos se comunicam...

O segundo problema é econômico, social e estrutural. As máquinas de fake news se retroalimentam de poder e dinheiro. Qual seria a alimentação das nossas máquinas de ¨true news¨? Como estruturar um ¨gabinete do óbvio¨? Os recursos têm que sair de algum lugar, e creio que nenhum instituto de pesquisa nacional tem condições de recrutar um time de meia dúzia de hackers para montar fazendas de celulares, bots e perfis falsos. Pelo menos, acredito ser difícil de encaixar uma iniciativa dessas nos projetos de extensão tradicionais. Além disso, o financiamento dos projetos de divulgação, na maioria das vezes, é público. Qual o apelo direto, dentro e fora da comunidade acadêmica, para apoiar um plano com esses objetivos? Acho que talvez no campo da ciência política, ou da sociologia, ou mesmo da antropologia, poder-se-ia justificar uma pesquisa desse tipo. Justo nas áreas das ciências humanas, o cocô do cavalo do bandido das nossas políticas de financiamento à pesquisa atuais... 

As fake news vieram para ficar, A comunidade científica e a sociedade precisam se organizar e responder à altura: filosoficamente, politicamente, financeiramente e, antes de qualquer outra coisa, tecnologicamente. É urgente!

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