Existe Doença de Lyme no Brasil? Uma dissertação do Programa de Vigilância e Controle de Vetores sobre a ocorrência de Borrelia sp. em carrapatos








Ontem tive uma grande alegria, que foi poder acompanhar a defesa de um dos nossos alunos no Programa de Pós-graduação em Vigilância e Controle de Vetores do Instituto Oswaldo Cruz. Se eu pudesse, acompanharia a defesa de todos os alunos. Além do interesse como coordenador, nas defesas sempre se aprende muito, e é um momento sempre importante do ponto de vista pessoal, para o candidato e para as famílias. Eu sempre brinco que nas defesas a gente chora que nem nos casamentos e batizados. É um rito e um momento sempre muito marcante para mim.



Ontem eu assisti a defesa do agora Mestre Marcos Antônio Correia Rodrigues da Cunha, que originalmente veio do Espírito Santo e foi orientado pelo Prof. Gilberto Gazeta do IOC. Na banca estiveram presentes os Professores Mário Sérgio Ribeiro, da SES-RJ, Ary Elias Aboud Dutra, da Universidade Castelo Branco, Roberto do Val Vilela, da Fiocruz, Cristina Maria Giordano Dias, da SES-RJ e Heloíza Helena de Oliveira Morelli Amaral, da SES-RJ. O tema da dissertação foi interessantíssimo, o trabalho conduzido de altíssimo nível. As discussões foram realmente fora de série.



O Mestre Marcos Cunha estudou durante dois anos a presença da bactéria Borrelia em vetores de diferentes tipos, associados a pequenos mamíferos e aves na Reserva Florestal de Duas Bocas, no Espírito Santo. Esse trabalho é importante por que nessa região do país foram descritos inúmeros casos da Doença de Lyme, e há a possibilidade de que esses casos da doença sejam causados por essa bactéria, que pode ser transmitida por carrapatos. O aluno coletou mais de 5 mil carrapatos, pulgas e piolhos, a partir de cerca de 150 diferentes aves, gambás, roedores, morcegos, cães e humanos (incluindo pessoas da equipe!) e, após a análise de mais de 900 amostras, não houve nenhum registro de infecção por Borrelia. Algumas amostras, contudo, mostraram-se positivas para Rickettsia sp.



A apresentação do aluno e os dados gerados resultaram em sensacionais rodadas de discussão. O Prof. Dutra iniciou as arguições discutindo a questão do resultado negativo, e de que mesmo não tendo confirmado a presença de Borrelia, os dados eram importantíssimos para o Serviço de Vigilância. A valorização de resultados negativos é uma questão em aberto na ciência moderna. Por mais que sejam significativos, pois apontam caminhos e não deixam de ser uma descrição às vezes de fatos importantes, é sempre mais difícil publicar dados negativos, e eles acabam tendo pouca visibilidade.



Além da questão filosófica, existem duas questões práticas relacionadas à ausência de registros positivos de Borrelia nas amostras do Marcos. A primeira é que talvez o sistema de detecção não seja ideal para as linhagens que circulam no Espírito Santo (e no Brasil). Em termos práticos, sondas (primers ou oligonucleotídeos) diferentes poderiam ter resultados diversos. Em outro momento da discussão, chegou-se a colocar a possibilidade de rastreamentos metagenômicos, que estão nos planos do Prof. Gazeta. A segunda é que, de fato, o Ministério da Saúde não tem um protocolo ou procedimentos para a vigilância ou detecção de Borrelia no país, e o trabalho do Marcos, apesar dos resultados negativos, seria uma primeira aproximação ao problema.



Outro ponto interessante levantado pelo Prof. Dutra é a infestação dos poleiros de galinha. Muitas vezes a coleta de carrapatos em galinheiros é insuficiente por que o pesquisador não quebra os poleiros, e os carrapatos estão todos dentro dos tocos de bambu. Apesar do problema que isso pode gerar com os donos das galinhas, aparentemente quebrar os poleiros é um procedimento que às vezes faz muita diferença na coleta. Não pude deixar de pensar que vistoriar e trocar os poleiros de bambu por estruturas mais sólidas pode vir a ser uma ação de prevenção importante.



Durante a discussão, também apontou-se a ocorrência de Hepatozoon, Babesia e Anaplasma nas amostras coletadas. Questionou-se por que não se deu maior importância ao registro de Rickettsia, e nesse momento tanto o aluno como o Prof. Gazeta justificaram isso pelo recorte e pela ênfase na Borrelia e na doença de Lyme. De fato, o aluno chegou a querer mudar o projeto no meio do Mestrado, pois participou da primeira descrição de Vírus da Febre do Nilo no Brasil, trabalho que inclusive gerou uma publicação de destaque. Frente aos resultados negativos com Borrelia, eu até entendo essa motivação, mas confesso que fiquei muito feliz com a decisão final. O trabalho apresentado é importante e primoroso.



O Prof. Vilela comentou muitos aspectos relacionados à análise das sequencias de DNA das amostras, que foram usadas para identificação dos carrapatos coletados. Questionou o uso de sequencias concatenadas para a análise filogenética, mas, de qualquer maneira, elogiou muito a adoção desse tipo de análise na classificação, visto que muitos trabalhos baseiam a sua identificação taxonômica apenas com o resultado do BLAST. Eu pessoalmente já vi muito isso e concordo inteiramente com as colocações do Prof. Vilela, já que muitas vezes as sequencias são conservadas e o Blast não diferencia espécies próximas. Além disso, os bancos de dados muitas vezes têm erros e toda informação merece uma checagem mais cuidadosa. Eu já vi sequencias de tripsina depositadas como celulase!!!



Outro comentário relevante do Prof. Vilela é sobre o programa MEGA, para análises filogenéticas. A questão é que o programa facilita muito a realização das análises, e frequentemente os usuários montam os alinhamentos e as árvores filogenéticas sem muito domínio dos fundamentos, usando apenas os padrões do programa. A popularização da tecnologia sempre tem um preço...



Além disso, discutiu-se se o cão poderiam ser um reservatório ou sentinela, visto que a sorologia se reverte, chegando-se a um consenso de que o cão pode ser indicador de atividade de foco. Discutiu-se a possibilidade de um ciclo enzoótico envolvendo o carrapato bovino, Rhipicephalus microplus, e, no fim das contas, uma grande pergunta ficou em aberto: como interpretar os casos de Doença de Lyme no Espírito Santo, sem um registro adequado de Borrelia?



Uma discussão interessante, sobre escolhas metodológicas, foi sobre a decisão de se fazer coletas durante apenas 2 dias em reservas ou parques florestais. Além de diminuir o cansaço da equipe, que prejudica a amostragem ao longo dos dias, essa parece ser uma escolha no sentido de diminuir o impacto ambiental das coletas. Fica aqui o registro de que essa tem sido uma tendência para os trabalhos de campo e vigilância na área.



Uma discussão extremamente relevante foi sobre o conceito de doença emergente ou re-emergente como falha de vigilância. Sem desconsiderar a ocorrência de fatos epidemiológicos novos, como introduções de patógenos, vetores ou agentes externos, é possível que muitos eventos que se descrevem como reaparecimento ou aparecimento de uma doença sejam simplesmente oriundos da ausência ou descontinuidade de registro. Exemplificando, a doença ou o patógeno sempre estiveram circulando na população, mas com a ausência de estudos por um certo tempo, em uma determinada área, pode-se ter a impressão de que aquela é uma nova introdução. Com o atual estado do sistema de vigilância de inúmeros agravos no Brasil, não é de surpreender se no futuro estivermos nesse tipo de esparrela. Também vale destacar a importante colocação do Prof. Gazeta, de que deveríamos sempre priorizar a vigilância e a prevenção, em vez do tratamento e diagnóstico, não só no sentido de evitar o sacrifício humano, mas também pelo custo e eficácia das estratégias de prevenção. Eu destaco que isso é um problema mundial, e não se restringe aos agravos transmitidos por vetores. A medicina moderna, como um todo, muitas vezes prioriza o diagnóstico e tratamento em detrimento da prevenção, e isso até para algumas doenças cujas causas são conhecidas e evitáveis. E isso também inclui os sistemas de financiamento à pesquisa...



As professoras Dias e Amaral, assim como o Prof. Ribeiro, fizeram cuidadosos apontamentos de forma e conceitos, revelando uma leitura muito atenciosa do material. Achei particularmente interessantes a colocação da Prof. Amaral de que os sítios de coleta têm que ser extensivamente caracterizados e descritos, e a sugestão do Prof. Ribeiro de que fosse adicionado um item de perspectivas, dificuldades ou da importância para o serviço de saúde do trabalho realizado. O Prof. Dutra sugeriu que isso constasse de um item ¨Considerações Finais¨. Achei as sugestões ótimas e sua incorporação será sugerida ao nosso modelo de Dissertação.



De maneira geral, eu não poderia estar mais feliz. Além de ver o Marcos defender sua dissertação com sucesso, obtendo o título de mestre com um trabalho de excelente qualidade, pude constatar não só que o programa está fazendo o que se propôs, que é conectar a academia com o serviço de saúde, contribuindo para as ações do ministério. As amostras coletadas pelo Marcos, além disso, resultarão em uma série de trabalhos importantes para o grupo do Prof. Gazeta, constituindo um patrimônio de grande valor para o Instituto Oswaldo Cruz. E fica aqui uma grande pergunta, que é importante do ponto de vista tanto prático como científico: afinal, existe mesmo doença de Lyme no Brasil?

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