Um artigo de 1987 - Vacinas contra vetores?


Hoje vou fazer um rápido comentário sobre um artigo que li há alguns dias e que chamou bastante a minha atenção. Trata-se do artigo:


Eu ando lendo bastante a respeito de bactérias do intestino de barbeiros, em função de um dos projetos do laboratório. O caso do Rhodnius prolixus é particular no sentido de que poucas relações entre um inseto e uma bactéria intestinal, no caso o Rhodococcus rhodnii, foram estudadas em tanto detalhe e com tanta clareza. Em resumo, o R. prolixus depende de R. rhodnii para seu desenvolvimento. Barbeiros são insetos obrigatoriamente hematófagos, ou seja, sugadores de sangue, e um dos problemas que eles enfrentam é de deficiência de várias vitaminas na dieta. Uma das coisas que foi demonstrada em estudos no início do século passado é que R. prolixus depende de R. rhodnii por que essa bactéria ajuda o inseto fazendo a síntese de vitaminas do complexo B. Isso foi demonstrado em uma série de estudos absolutamente elegantes que posso comentar em outro momento.

O trabalho de Ben-Yakir parte da seguinte premissa: se o inseto depende da bactéria, o que aconteceria se no sangue ingerido houvessem anticorpos contra ela? Caso os anticorpos tivessem um efeito contra a bactéria simbionte, isso poderia atrapalhar ou mesmo impedir o desenvolvimento do vetor. Com essa lógica, o autor isolou a bactéria do intestino dos barbeiros que eram criados no seu laboratório, e utilizou essa bactéria cultivada para imunizar coelhos, que foram então usados para alimentar os insetos.

Foram observados diferentes grupos experimentais, de insetos com e sem a bactéria simbionte, alimentados em coelhos imunizados ou não. Os resultados não poderiam ser mais elegantes. Vejam a figura 1:



O que observamos aqui é que o número de bactérias simbiontes nos insetos que se alimentaram de coelhos imunizados (triângulos e bolinhas cheias) é muito menor do que nos insetos que se alimentaram de coelhos normais (bolinhas vazadas). Isso foi acompanhado ao longo dos dias após a alimentação por dois motivos: a digestão do sangue é extremamente lenta em barbeiros, podendo levar de uma a duas semanas, e durante esse processo observa-se um crescimento muito grande do número de bactérias intestinais (observem a mudança nas bolinhas vazadas do terceiro para o quarto dia após a alimentação).

Isso foi testado inicialmente em insetos pequenos, no segundo estágio (barbeiros dessa espécie têm cinco estágios larvais antes de atingir a fase adulta). Um efeito semelhante foi observado em insetos maiores, de quinto estágio:



Após observar que a quantidade de simbiontes era diminuída nos insetos alimentados com sangue de coelhos imunizados, o autor resolveu ver se essa diminuição teria mesmo efeito no desenvolvimento dos insetos, acompanhando a muda deles para o estágio subsequente:



O que observamos aqui é que os insetos alimentados com sangue de coelhos imunizados (grupos E-II e X-II) demoram mais do que os controles para mudar para o próximo estágio (grupo C-II). Foram também acompanhados insetos com a ausência total dos simbiontes (A), os quais, como esperado, mostraram um atraso muito maior no desenvolvimento.

E qual é a importância desses achados? Inicialmente, temos uma questão conceitual importante. Seria possível combater insetos vetores imunizando os hospedeiros vertebrados, especialmente os humanos em áreas de transmissão, contra bactérias simbiontes ou mesmo antígenos do próprio inseto? Em teoria sim, embora sejam necessárias inúmeras melhorias técnicas para que tal estratégia fosse considerada no mínimo viável. Reparem que o desenvolvimento dos insetos não foi completamente bloqueado, apenas retardado. É claro que isso pode ter consequência enormes na biologia desses vetores, pois eles estariam mais sujeitos à predação e a patógenos. O que se sabe de forma geral é que barbeiros com muito atraso no desenvolvimento geralmente não completam o ciclo, morrendo ao atingir a fase adulta sem colocar ovos.


A outra importância reside em um melhor entendimento da fisiologia de barbeiros, e de possíveis interações entre a microbiota e o sangue do vetor vertebrado. Aparentemente, fatores do sistema imune do coelho, não só anticorpos mas também as células do sistema imune, apresentam atividade dentro do intestino do inseto vetor, e isso pode ter consequências importantes ao longo do ciclo de vida do inseto. Ainda não tenho clareza por que essa estratégia e esse tipo de estudo não foi levado a cabo, mas de qualquer maneira é sempre interessante revisitar idéias antigas e trabalhos científicos elegantes da entomologia médica. Será que um dia teremos vacinas contra barbeiros?

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