FALANDO MERDA



Continuando as indicações e discussões de livros recentemente lidos, gostaria de destacar esta pequena obra prima:



Frankfurt, Harry G. ON BULLSHIT. Princeton: Princeton University Press. 2005. 67p.

É um livro admirável. Não é leitura leve, pelo contrário: trata-se de um curto tratado filósófico escrito por um renomado professor de filosofia moral, de uma das maiores universidades do mundo. É um livro pequeno, mas de leitura relativamente trabalhosa. Confesso que o comprei para ler no avião, e tive uma grata surpresa...

O tema do livro é basicamente a origem, a natureza e a função social do que o autor chama BULLSHIT. O tradutor do google me retorna a palavra em português ¨besteira¨, um correspondente talvez seja ¨bobagem¨. Mas quem tem um contato um pouco mais íntimo (do que o tradutor do google) com a língua inglesa sabe que BULLSHIT é muito mais pejorativo e agressivo do que essas inocentes traduções. Por conveniência, enfim, adotarei a palavra besteira, mas o mais adequado seria MERDA, no sentido de FALAR MERDA. Há também o problema de traduzir o termo inglês que descreve quem fala BULLSHIT, o BULLSHITTER. Não consegui pensar numa tradução à altura. Cascateiro não é exatamente a mesma coisa, e falador de merda é comprido demais...

O livro começa com estas palavras arrebatadoras:

¨One of the most salient features of our culture is that there is so much bullshit.¨

O livro inicia-se por uma discussão a respeito do significado do termo, e de possíveis correspondentes na língua inglesa. Esclarecer o significado das palavras é sempre uma das melhores maneiras de iniciar uma discussão, como disse Sócrates: defina seus termos. Para refinar o significado e a origem do termo, o autor recorre ao dicionário, e a outros pensadores como Max Black, Wittgenstein e Pascal.

A discussão filosófica que se segue é extremamente densa e rica e, resumindo em poucas palavras, o esforço do autor se concentra na tarefa de distinguir a besteira da mentira. Na mentira, há um compromisso e uma preocupação mínimos com a verdade, no sentido de que, para que a mentira seja crível, ela deve se conectar ou ter certa harmonia com a realidade. Dessa forma, um mentiroso contumaz, para que seja convincente, precisa ter um mínimo de respeito com os fatos.

Mas quem está falando merda não. A besteira não necessita nenhuma conexão ou conferência, é um ato ou uma aposta completamente descompromissada com a realidade. Ela é criada a partir do nada, da pura invenção ou conexão de fatos, e pode até ser verdadeira. Ela é geralmente falsa, de araque, mas não necessariamente com essa intenção. E talvez por isso ela seja menos ofensiva ao interlocutor, por que em nenhum momento houve a presunção da verdade.

Após distinguir e definir a natureza da besteira, o autor se esforça por entender as razões da existência de tanta besteira no mundo atual. Inicialmente, é possível que a proporção de besteiras ditas não tenha mudado, mas, com as novas ferramentas de comunicação há uma troca de informação muito mais intensa, dando a impressão de que a quantidade de besteiras ditas aumentou. Seja como for, a principal causa da besteira parece ser exigir que alguém fale a respeito de alguma coisa sobre a qual não tem conhecimento suficiente, o que é absolutamente comum na vida pública. Além disso, a convicção generalizada de que cidadãos em uma democracia são obrigados a ter opinião sobre tudo é um grande potencializador do problema. Um outro fator também é a proliferação de atitudes céticas que rejeitam a possibilidade de conhecermos o mundo com ele é, o que faz com que debates sobre o que é verdadeiro ou falso percam a relevância.

Eu estou honestamente impressionado com a atualidade desse livro. Ao lê-lo, achei que era uma reflexão sobre o momento político atual, ou mesmo sobre a dinâmica das discussões sobre praticamente qualquer coisa no nosso mundo de seitas e públicos globalizados. Mas o livro foi publicado em 2005, e certamente concebido e descrito antes. Como todo excelente filósofo, é possível que o Prof. Frankfurt estivesse antecipando uma nova realidade ou tendência, através de seus sintomas. Não é a primeira vez nem será a última que isso acontecerá na história, estarem os filósofos à frente do resto. E, além disso, fica claro como a boa filosofia é quase sempre atemporal.  

Contudo, o Prof. Frankfurt não antecipou um fenômeno novo, que é o uso altamente profissional e indiscriminado da besteira. Faladores de merda profissionais ganharam uma projeção mundial, poder sem precedentes. E aqui é preciso fazer um parêntese: diversos autores modernos apontam que um componente principal das besteiras (ou fake News, dependendo do contexto) é apenas estabelecer e reforçar uma relação de poder. Quando alguém que tem poder de fala declara uma merda ao público, os atingidos, ou quem sabe que aquilo é mentira, tem o trabalho humilhante de ter que comprovar que aquilo é falso. Não se exige mais a prova da verdade de quem diz, mas sim de quem contesta.

Nesse sentido, combater fake News ou bobagens com a verdade parece com enxugar gelo, por que, além de tudo o mais, é muito mais difícil e trabalhoso produzir conhecimento válido do que inventar merda. Para um cientista, esta é uma época especialmente difícil de entender, por que a verdade e a conferência dos fatos são a base do nosso pensar e do nosso fazer. Eu já perdi a paciência (e fui deselegante em algumas discussões) ao ver pela enésima vez uma bobagem ridícula sendo propagandeada e repetida, dessas que 3 segundos de trabalho de conferência são suficientes para refutar.

Já cheguei a pensar em combater fake news com mais fake news. Por exemplo, no caso dos antivaxxers, inventar uma correlação de que eles são pessoas com problemas cerebrais graves, ou que são uma seita satânica, ou que têm objetivos econômicos escusos. No caso dos nossos políticos, inventar um estudo mostrando como o tamanho cerebral dos políticos atuais é menor do que os do século passado. Inventar que esses pastores charlatões que tanto sucesso fazem no Brasil são todos pedófilos ou traficantes de crianças e órgãos. Enfim, inventar besteiras é fácil e rápido, poderia ser uma arma de contrapropaganda, mas acho que as consequências poderiam ser até piores, de descrença generalizada ou mesmo um afastamento nos debates total e irreversível da realidade e dos fatos.


Enfim, fica aqui a sugestão de leitura. Há uma tradução em português, do brasileiro Ricardo Gomes Quintana, que assumiu o título ¨Sobre falar merda¨. Espero que gostem e se tiverem alguma bobagem ou mesmo reflexão séria para compartilhar, fiquem à vontade!

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