O pequeno calor da digestão sanguínea: mais uma incursão pelo fantástico e maravilhoso intestino dos barbeiros!



Uma das últimas atividades do ano foi a minha participação na banca de mestrado da excelente aluna Tainan Carla Guedes, orientada pelo ilustre Prof. Dr. Pedro Lagerblad Oliveira e pelo excepcional Dr. Felipe de Almeida Dias da UFRJ. Participar das bancas do grupo do Prof. Pedro é sempre uma honra, pois é um dos grandes líderes da entomologia molecular no país, além de ser coordenador do INCT do qual participo.

O tema do trabalho é interessantíssimo, e a apresentação da aluna foi impecável. Recentemente, o grupo do Prof. Pedro analisou o transcriptoma de barbeiros da espécie Rhodnius prolixus antes e depois da ingestão do sangue, comparando também insetos infectados com o parasito Trypanosoma cruzi, o agente causador da Doença de Chagas. Foram testadas diferentes condições, como formas distintas do parasita e concentrações deste no sangue ingerido pelo inseto. Contudo, de uma forma geral, o que se procurou foram genes diferencialmente expressos nessas duas condições (ingestão de sangue e infecção pelo parasita), com o objetivo de procurar fatores importantes na digestão do sangue e na interação com o parasita.

De antemão, já se conhecem inúmeros efeitos do sangue no intestino do vetor, como a indução da produção da membrana perimicrovilar (uma membrana que recobre a superfície do intestino e que protege o órgão de fatores agressivos da dieta) e a produção de enzimas digestivas. Assim sendo, em relação à ingestão de sangue, a ênfase mais natural é em genes que têm a sua expressão aumentada após a alimentação. No caso da infecção com T. cruzi, sabe-se que o parasita inibe ou modula diferentes processos fisiológicos no vetor, para facilitar sua sobrevivência, multiplicação e posterior transmissão. O ambiente intestinal é bastante agressivo para microorganismos, a não ser que esses estejam adaptados a suas condições – ou as modifiquem para torna-las mais amenas. Dentre os processos e componentes sabidamente modificados ou utilizados pelo parasita, estão a microbiota, algumas atividades enzimáticas e a própria membrana perimicrovilar.

Nesse rastreamento, feito anteriormente pelo grupo, destacou-se um grupo de proteínas particulares, as Small Heat Shock Proteins (SHSPs), ou Proteinas de Choque Térmico Pequenas, e foi nesse grupo de proteínas que se concentrou o trabalho da agora mestra Tainan. Essas proteínas são conhecidas por responderem a diferentes tipos de estresse celular em outros organismos, especialmente por terem um papel de chaperonas – proteínas que ajudam no enovelamento de outras proteínas durante sua síntese. Em altas temperaturas, exposições a agentes que resultem na desnaturação de proteínas ou mesmo durante processos que requisitam altas taxas de síntese proteína, chaperonas são fundamentais para evitar a formação de agregados proteicos e perda excessiva de proteínas mal formadas durante a sua produção.

Dos 8 genes de SHSPs presentes no genoma do barbeiro, 5 são expressos no intestino, e desses 5 há um grupo de três genes que são induzidos durante a alimentação sanguínea e inibidos durante a infecção pelo T. cruzi. Esses genes, por serem muito parecidos entre si, parecem ser um aquisição evolutiva recente, podendo ser o resultado de duplicações gênicas. O grupo pode confirmar o papel canônico dessas proteínas, observando sua indução após expor os insetos a um choque de alta temperatura, e através de silenciamento gênico (com a técnica de RNAi) pode mostrar que esses genes são importantes para a digestão e para a infecção por T. cruzi. Foram observados efeitos bastante interssantes sobre esses dois fenômenos, com a inibição das SHSPs levando a uma aceleração da digestão, e a uma maior infecção pelo T. cruzi.

Um dado interessantíssimo é que esses genes, modulados pelo sangue e pela infecção, possuem elementos regulatórios que respondem ao hormômio ecdisona, assim como ao fator de transcrição HSF (Heat Shock Factor). Isso pode indicar que o parasita pode estar explorando essas duas vias de regulação da expressão gênica, que são bastante gerais, para afetar muitos processos fisiológicos ao mesmo tempo.

A arguição da aluna foi muito divertida e esclarecedora. Tive a sorte de dividir essa banca com o querido Prof. Dr. Rodrigo Nunes da Fonseca, da UFRJ-Macaé, e com o brilhante Prof. Dr. Fernando Lucas Palhano Soares, que levantaram aspectos muito interessantes do trabalho. Alguns pontos valem a pena ser considerados. O primeiro é o cuidado que se deve tomar ao estudar qualquer propriedade particular em espécies hematófagas partindo do princípio de que são adaptações à hematofagia. Nesse sentido, é preciso verificar se essas adaptações não estavam presentes nas espécies do mesmo grupo com características mais ancestrais. No caso de barbeiros, são espécies de hemípteros com comportamento predador ou fitófago. É possível que o uso de SHSPs intestinais específicas preceda a hematofagia, sendo então uma pré-adaptação, ou seja, uma característica que já estava presente no ancestral mas que se mostrou especialmente favorável na nova condição fisiológica ou alimentar.

Outro ponto interessante é sobre o papel real dessas chaperonas. Eu fiquei muito impressionado com os resultados, e fiquei propenso a imaginar que essas proteínas estão respondendo ao estresse fisiológico de produção de uma enorme quantidade de proteínas e da membrana perimicrovilar. Uma discussão que se abriu na banca, nesse momento, é que como essas proteínas não tinham nenhum sinal de endereçamento para o retículo, deveriam ser citossólicas. Nesse sentido, para que tivessem envolvimento com as proteínas secretadas durante a digestão do sangue, estas deveriam seguir uma via não canônica de secreção.

Mas é justamente isso o que acontece no intestino de um Hemiptera. As proteínas que são secretadas para o lúmen o são através de vesículas de dupla membrana, aonde a membrana interna se funde à membrana perimicrovilar e a membrana externa se funde à membrana microvilar. Mesmo que não estejam envolvidas com a produção e secreção de proteínas luminais, é possível que essas SHSPs estejam envolvidas com o processo de produção e endereçamento dessas vesículas tão especiais. Nesse caso, vale a pena ressaltar que isso não é uma novidade de hemípteros hematófagos, já que todos os hemípteros se caracterizam por ter esse tipo de secreção de dupla membrana.

Eu fiquei particularmente curioso em saber como está a membrana perimicrovilar dos insetos que foram silenciados para as SHSPs. É possível que haja um paralelo entre os dados do grupo em barbeiros e o que se viu em mosquitos, aonde a degradação da membrana peritrófica levou a uma aceleração do processo digestivo. Embora sejam estruturalmente muito diferentes, a membrana peritrófica de mosquitos e a membrana perimicrovilar de barbeiros compartilhas algumas funções, como a proteção do epitélio intestinal frente a patógenos e absorção de moléculas tóxicas como o heme. Nesse sentido, a aceleração da digestão pode estar evidenciando que a membrana perimicrovilar, pelo menos em triatomíneos, não tem um papel pronunciado na compartimentalização da digestão, aumento da eficiência e aceleração do processo digestivo. O que é muito interessante do ponto de vista conceitual.

Fica a pergunta de porquê a infecção por T. cruzi foi favorecida nos insetos silenciados. Como o estabelecimento do T. cruzi depende da presença da membrana peritrófica, é de se esperar que nesses insetos essa estrutura ainda esteja presente. A mestra Tainan também observou que a microbiota desses insetos não estava alterada, então isso não é um efeito indireto devido a mudança de populações bacteriana que poderiam estar competindo com o T. cruzi. Por outro lado, é possível que a alteração nas SHSPs tenha resultado em uma mudança no estado imunológico dos insetos.

Discutiu-se também a eventualidade do intestino do barbeiro estar sofrendo um choque térmico, ao ingerir sangue a 37 graus Celsius. Afinal, insetos não controlam a temperatura corporal, e muito provavelmente o intestino dos insetos nos experimentos deveria estar a 25 ou 28 graus Celsius, ou seja, à temperatura ambiente da sala de experimentação. Essa diferença de mais de 10 graus Celsius entre o alimento e o intestino justificaria o uso de proteínas de choque térmico na digestão. Nesse sentido, levantaram-se duas objeções: recentemente, o grupo do Prof. Dr. Claudio Lazzari mostrou em um trabalho realmente espetacular que os barbeiros possuem um sistema de contracorrente na porção anterior do sistema digestivo, que começa em uma longa probóscide e que resfria o sangue. Dessa forma, o sangue que entra no intestino já está bem próximo da temperatura corporal. Além disso, mesmo que houvesse uma diferença de temperatura significativa ela seria muito transiente, durando no máximo alguns minutos ou uma hora. E a indução dessas proteínas de choque térmico ocorre alguns dias após a ingestão do sangue, portanto o choque térmico não estaria ocorrendo ao mesmo tempo que a resposta tecidual. Seja como for, são aspectos que também devem ser estudados em mais profundidade.

Seja como for, a defesa de um trabalho tão bonito deixou claro para mim, novamente, grandes lições do mundo acadêmico. A primeira é de que como um bom trabalho científico, especialmente no nível de mestrado, se caracteriza por abrir portas, muitas vezes deixando mais perguntas no ar do que havia no começo do estudo. Nesse sentido, eu pedi para a mestra Tainan, que não ficasse ansiosa com isso. Essa é uma advertência geral que deve ser dada sempre a todos os alunos de pós-graduação no começo de suas carreiras, pois é comum eles acharem que vão encontrar muitas respostas...

A segunda é de que como trabalhos em rede, estruturantes e transversais, como o que foi realizado com o projeto genoma do barbeiro, fertilizam a comunidade científica por muitos e muitos anos, sendo a base para que se respondam questões conceituais de fôlego, como as vias de regulação que começaram a ser apontadas no estudo de mestra Tainan. Desde já lhe desejo muito sucesso no doutorado, e fico muito curioso para assistir às cenas dos próximos capítulos de um trabalho tão estimulante. Parabéns à mestra Tainan, ao Prof. Pedro Lagerblad, ao Dr. Felipe Dias e à toda a equipe do laboratório!

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