A digestão de insetos - parte 9
Retomando a nossa discussão, os estudos da
fisiologia digestiva de insetos pretendem responder, em geral, a duas perguntas
básicas: como é possível que insetos sejam capazes de se alimentar de
praticamente qualquer coisa? O que explica a enorme eficiência da digestão desses
organismos?
Hoje vou começar a discutir alguns elementos
que ajudam a responder a primeira pergunta acima. Inicialmente, precisamos
considerar em que consiste, em termos moleculares, a digestão dos alimentos. Nossas
células intestinais são recobertas por membranas celulares (como todas as
células, afinal), que são semi-permeáveis e que permitem a entrada apenas de
moléculas muito pequenas. Dessa forma, moléculas grandes como amido (polissacarídeo)
e proteínas precisam ser degradadas, ou decompostas em moléculas menores. As
grandes moléculas do alimento são, em geral, polímeros – polissacarídeos como o
amido ou a celulose são cadeias longas de monossacarídeos, ou açúcares
pequenos como a glicose, e proteínas são polipeptídeos, ou polímeros de aminoácidos. Após a
degradação em moléculas pequenas, os nutrientes são absorvidos pelas células
intestinais e depois metabolizados e distribuídos para o resto do corpo. Uma
representação desse fenômeno está na figura a seguir:
Assim sendo, um trabalho inicial que é realizado
no intestino da maioria dos animais (incluindo os insetos) é a quebra das
cadeias de moléculas grandes em moléculas pequenas. E nesse ponto reside a
resposta a nossa primeira pergunta: quem faz esse trabalho são as enzimas
digestivas, e basicamente insetos são capazes de digerir praticamente qualquer
material por que a sua diversidade de enzimas digestivas é enorme. Em geral, o
conjunto de enzimas digestivas que um inseto tem está relacionado ao alimento
que ele ingere. Um exemplo bastante corriqueiro e interessante é o da digestão
da celulose que é realizada por cupins, besouros e algumas baratas, entre
outros insetos. Embora não pareça para nós, a celulose que compõe a madeira e o
papel é feita 100% de açúcar – as moléculas de celulose são compostas por milhares
de moléculas de glicose ligadas umas às outras em uma longa cadeia linear. Os
organismo que digerem celulose têm uma enzima, a celulase, que é capaz de
romper essas cadeias, liberando a glicose para que ela seja absorvida no
intestino. Nós não somos capazes de digerir celulose, e nem reconhecemos o
papel como açúcar, por que não temos essa enzima digestiva.
E o que é, em termos mais detalhados, uma
enzima digestiva? Enzimas são catalisadores biológicos. Um catalisador é uma
substancia que acelera uma reação química. Reações químicas em geral são a
transformação de moléculas ou substâncias em outras substância com outras
propriedades. Em química, uma reação é descrita através das transformações que acontecem
enquanto um ou mais reagentes se tornam produtos da reação. Em enzimologia (o
estudo das enzimas), as reações químicas que são facilitadas (ou catalisadas) por
enzimas são descritas como transformações dos substratos da enzima em seus
produtos. Por exemplo, a celulase é a enzima que transforma celulose (o
substrato longo) em glicose (produto pequeno), através do rompimento da cadeia
polissacarídica.
Enzimas são catalisadores absolutamente
fantásticos, e seria possível escrever muitos e muitos textos sobre suas
propriedades maravilhosas. Contudo, para entender melhor a digestão dos insetos
precisamos focar primeiramente em uma de suas propriedades: a especificidade.
Essa propriedade foi apresentada informalmente no texto acima, quando dizemos
que a celulase degrada celulose e que nós não conseguimos isso por que não
temos essa enzima. A nossa principal enzima digestiva para a digestão de açúcares
é a amilase, uma enzima que reconhece apenas cadeias de amido (que também são
compostas de glicose, mas em um arranjo estrutural diferente) e que não tem
ação nenhuma sobre a celulose. A maioria das enzimas reconhece apenas um
substrato específico e catalisa (ou acelera) apenas um tipo de reação química.
Há algumas exceções, e às vezes uma enzima é capaz de reconhecer um
conjunto de substratos com estruturas e propriedades químicas semelhantes.
Assim sendo, o tipo de moléculas de alimento que
um organismo consegue digerir está restrito pelo conjunto de enzimas digestivas
que ele possui no seu sistema digestivo. Existe uma diversidade enorme de
enzimas, e elas podem ser classificadas de acordo com diferentes critérios. O
critério mais antigo se baseia na descrição da reação química que a enzima
catalisa. Na verdade, esse é um critério que ainda é muito utilizado e que é
bastante útil, por que afinal de contas reflete melhor não só como se mede a
atividade da enzima, mas também o seu papel fisiológico. O fato de que enzimas
foram definidas, detectadas, estudadas e classificadas através do estudo das
reações químicas sobre as quais elas atuam é uma das grandes realizações do
pensamento abstrato humano nos séculos XIX e XX.
As reações que enzimas
catalisam são de sete tipos: oxidoredutases, transferases, hidrolases, liases,
isomerases, ligases e translocases. As enzimas digestivas são praticamente todas
hidrolases, ou seja, realizam reações de hidrólise. O nome hidrólise significa
quebra (lise) através da água (hidro). Em temos químicos, estamos falando do rompimento
de uma ligação química (por exemplo, a ligação entre as moléculas de glicose da
cadeia de celulose ou na cadeia de amido) pela inserção de uma molécula de água
nos grupos químicos que realizam essa ligação. Uma forma simples de representar
a reação de hidrólise (ou separação) de acúcares maiores em unidades menores, que
acontece durante a digestão, está na figura a seguir:
Percebam que inicialmente as duas moléculas de
glicose estão ligadas através do átomo de oxigênio representado pela letra O, e
por duas ligações químicas que são representadas pelas linhas pretas. De certa
forma, os átomos da molécula de água (em azul) ligam-se às moléculas de glicose
(e ao átomo de oxigênio), fazendo com que essas agora sejam duas moléculas
independentes. Nesse caso, dizemos que ocorreu a hidrólise de um dissacarídeo
(duas moléculas de glicose ligadas) em duas moléculas de glicose, que agora
podem ser absorvidas pelas células intestinais.
O mesmo tipo de reação acontece durante a
degradação de proteínas. Esse tipo de reação está representado abaixo, como a
hidrólise que resulta na separação de
dois aminoácidos previamente ligados:
Dentre as hidrolases que participam da
digestão, existem três grupos principais: as carboidrases (que digerem açúcares),
as proteases (que digerem proteínas) e as lipases (que digerem lipídeos). Nos
próximos textos nós continuaremos discutindo cada um desses tipos.
Se tiverem sugestões ou dúvidas fiquem à
vontade para escrever nos comentários. Um grande abraço a todos e até a
próxima!
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