As separatas do fim do mundo
Continuando uma mudança
que talvez nunca acabe, essa semana acabei de digitalizar e salvar as últimas
cópias de trabalhos científicos que faltavam nos meus arquivos. Quando vim da USP para a FIOCRUZ
carreguei comigo dezenas de pastas de artigos impressos, grande parte de
originais enviados pelos autores. As famosas separatas.
Talvez os leitores mais
novos nem saibam ou consigam imaginar do que se trata. Há alguns anos atrás
(serei gentil), não havia ferramentas de busca de artigos pela internet, não
havia revistas digitais, não havia nem computadores para os alunos nos laboratórios.
As revistas eram impressas, ficavam na biblioteca, e o hábito corriqueiro era folhear
as últimas edições (que ficavam expostas num tipo de vitrine aberta) para ver
as novidades da área.
As referências e fontes de
leitura vinham dos colegas, dos orientadores, dos próprios artigos, e de catálogos
impressos, que depois passaram a ser consultados em terminais na biblioteca. No
meu caso eram o Biological e o Chemical Abstracts, com os títulos e resumos dos
artigos científicos publicados naquele ano. Eu tive o privilégio imensurável de
ter acesso a uma das melhores bibliotecas do país, a do Instituto de Química da
USP, numa época em que isso fazia muito mais diferença (não havia Portal
CAPES). A minha memória daquele prédio é sentimental, sensorial, em poucos
lugares passei tanto tempo e tão feliz. Passei pelo setor de revistas, de
livros, de livros antigos, de obras raras e até me aventurei no setor de
microfilmagem, para consultar originais em alemão e francês do começo do século
XX.
Acontece que, por melhor
que fosse a biblioteca, a minha curiosidade não tinha fim, e eu sempre
esbarrava em citações de artigos que eu PRECISAVA LER e que a biblioteca não
tinha nas prateleiras. Coisas como a Revista Peruana de Biologia, a Revista
Indiana de Agropecuária, ou uma revista alemã cujo nome não vou nem tentar
traduzir. A saída era escrever para os autores, e pedir uma cópia pelo correio.
Levava semanas, meses, mas valia muito a pena. Alguns artigos vinham assinados,
com uma saudação escrita em inglês ou numa língua estranha. O papel era
espetacular, não esse papel higiênico reciclado que somos obrigados a usar
hoje. O CHEIRO dos artigos era o máximo.
E isso era prática
recorrente. Os departamentos tinham até postais prontos para enviar, era só
preencher a referência e o endereço do autor. E, como isso não era cobrado dos
estudantes, eu pedia dezenas todos os meses. E recebia um monte de envelopes
toda semana. Como eu era apenas um estudante de graduação quando comecei a
fazer isso, os meus envelopes se acumulavam num escaninho comum da secretaria,
junto com as correspondências sem dono e um monte de propagandas impertinentes.
Mas eu ia lá quase todo dia pegar os meus envelopes. Eu era feliz.
Pois bem, mais de vinte
anos depois, e precisando liberar espaço na minha sala (ainda está insalubre),
ataquei essas pastas. Para minha surpresa, quase todos estão disponíveis on
line, que sorte a dos estudantes de hoje! Os russos continuaram me dando
trabalho, pois quase nada deles dessa época está on line. Paciência, toca
escanear tudo. A ordem é zerar as gavetas. Ao longo dessa jornada, viajei no
tempo. Vi artigos em que não mexia há anos, que sacudiram o pó das minhas
idéias. Que artigos LINDOS. Que SAUDADE daqueles estudos.
Muitos com anotações
minhas feitas à mão. Pude vislumbrar de novo as dúvidas daquele moleque cabeça
dura que queria entender os mecanismos da vida. Algumas dúvidas ótimas, outras
engraçadas de tão tontas. A maioria das perguntas continua comigo, e sem
resposta. Outros artigos, com anotações à mão da minha orientadora, de quem
tenho tanta saudade e que me faz tanta falta.
Dois me fizeram parar para
pensar. Um deles foi a separata do artigo na Nature do Rod, que ele me deu de
presente quando nos conhecemos em São Paulo. Naquela época fazia sentido você
dar de presente uma cópia de artigo. E era um artigo na Nature, afinal de
contas. Naquela época eu não sabia o que isso significava de verdade. E hoje
vejo que não foi à toa que o Rod se tornou um dos meus melhores amigos no
mundo, e vejo como aquele presente tinha tanto significado. O Rod sempre deu o melhor
de si para os outros, e aquele artigo não só era espetácular como também era uma
lembrança de uma das melhores épocas da sua vida, os dias em que moraram em
Bath. Imediatamente me lembrei dos dias que passamos ali e da bondade infinita
com que me receberam na Inglaterra quando precisei.
O outro me fez rir à beça.
Também da Nature, a primeira descrição de um gene de celulase de cupim. Aquilo
foi um estouro quando saiu. Nós estávamos estudando celulases de barata,
mostrando que elas também eram endógenas. Os japoneses estavam à nossa frente, e
o modelo deles trabalhava muito melhor esse paradigma. Mas quando saiu me deu
uma inveja tremenda. E hoje vejo como estávamos na fronteira. Será que ainda
estamos?
Mas o que me fez rir não
foi o artigo em si, mas o artigo que vinha antes. Isso era uma coisa que
acontecia com frequência na época dos artigos e revistas impressas, você ir
atrás de um artigo e se interessar pelo que estava na frente ou atrás. Ou
folhear aquela edição da revista e encontrar uns dois ou três trabalhos a mais
sem querer. O engraçado é que o artigo que aparece no começo da minha cópia,
que nunca chamou minha atenção para nada, era o da genotipagem da ovelha Dolly.
E eu só queria saber das celulases de cupim. A ciência nos faz percorrer uns caminhos
malucos, não é mesmo?
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