A Bioquímica do Oprimido (parte 1) – A Proposta

Demos início às aulas há cerca de uma semana. No primeiro dia, expliquei aos alunos alguns princípios e como a disciplina seria estruturada. Comecei com a história da disciplina, e contando um pouco da minha também. É a segunda edição da disciplina, que mudou de nome: antes era ¨Princípios de Bioquímica¨, agora mudou para ¨Bioquímica Avançada¨. Fiz isso por que na primeira edição alguns alunos que se matricularam precisavam na verdade de uma base mais reforçada para acompanhar as discussões, que na prática acabaram sendo bastante aprofundadas. A turma era muito heterogênea, e como eu não consegui trabalhar algumas dessas diferenças de base, tivemos algumas desistências. O novo nome e ementa foram propostos para ajudar um pouco aos ingressantes na escolha, esclarecendo que são necessários alguns conhecimentos prévios para acompanhar as aulas.

O objetivo maior da disciplina é dar uma base reforçada em Bioquímica para alunos que estão entrando na pós-graduação. Considero isso importante por que Bioquímica tem uma série de conceitos estruturantes e transversais, que servirão aos alunos e projetos das diferentes áreas Biomédicas da Fundação. A inspiração direta vem da disciplina parecida que é ministrada há anos no Instituto de Química da USP, aonde fiz a pós-graduação. Não cheguei a cursá-la, por que ela foi instituída quando eu já estava no pós-doutorado, mas pude acompanhar algumas discussões durante a sua proposição e implementação. Eu estou copiando até o livro texto, que na época era o Bioquímica dos Voet (agora na 4º edição). Um objetivo bastante palpável da disciplina é ler e discutir o livro todo. Dada a extensão do conteúdo, já está claro para mim que isso tem que ser em dois semestres.

Na primeira edição, os alunos liam um capítulo por semana e fazíamos discussões em grupo, numa roda em sala aonde cada aluno discorria sobre os conceitos que mais chamaram a atenção, pontos obscuros ou questionamentos que surgiram durante a leitura. Eu tentava interferir o mínimo possível, para que não virasse uma aula teórica minha sobre os conceitos escolhidos pelos alunos, e fosse mantido o caráter de diálogo entre os alunos, com ampla participação. As discussões foram realmente fantásticas, mas percebi dois problemas: ao pedir para os alunos escolherem os capítulos que seriam lidos, a sequencia de capítulos ficou um pouco fragmentada e não linear. A discussão de cada aula foi excelente, mas a visão do todo ficou um pouco prejudicada. Por isso esse ano eu mesmo escolhi os capítulos. O segundo problema é que poucos alunos se sentiam à vontade para discorrer sobre todos os temas, e alguns ficavam realmente muito quietos. E foi muito difícil para mim saber se o silêncio vinha da falta de leitura, falta de compreensão ou mesmo da timidez pessoal.

Eu continuo nas minhas leituras de Paulo Freire. Alguns conceitos que me interessaram muito no último livro que li (Pedagogia do Oprimido) são os de temas formadores e o de participação dos educandos em projetos libertadores. Mas como aplicar essa teoria no ensino de Bioquímica, que parece tão especializado e distante da realidade popular? O primeiro pensamento conciliador que me veio à cabeça é que, apesar de sermos parte de uma elite intelectual, todos (alunos e professor) sofremos diferentes tipos de opressão e necessitamos de libertação. Na verdade, fazemos parte da mesma sociedade que adota a prática e o discurso repressor.

No caso dos alunos de pós-graduação, parece-me muito fácil enumerar os tipos de opressão e agressão que eles sofrem, mesmo por que já fiz pós-graduação há muitos anos. Um aluno de pós-graduação brasileiro em geral ganha mal, não tem condições adequadas de trabalho e tem pouco reconhecimento do seu saber e do seu trabalho. Desenvolve estudos em campos altamente competitivos no nível mundial, com competidores em países ricos que dispõem de todo tipo de facilidades e tecnologias de ponta. Além disso, sofre preconceito e perda de oportunidades por ser brasileiro e fazer ciência no Brasil, um país que valoriza pouco a prática do cientista. Sem falar nas questões de assédio moral, e até mesmo sexual no caso das alunas. Durante as minhas leituras e preparação para a disciplina, questionei-me muito como poderíamos trabalhar essas questões, talvez não diretamente, mas aproveitando o ensino de Bioquímica para dar voz aos alunos e valorizar o seu conhecimento, trabalhando pelo menos as questões de valorização, independência e reconhecimento.

Um segundo pensamento conciliador foi a observação de que sem dúvida é possível encontrar temas formadores em qualquer disciplina e em qualquer público. Apenas é necessário fazer esse movimento de busca e pedir aos alunos que trabalhem esse conceito durante a leitura e discussões. E o terceiro pensamento é o de que esses temas formadores poderiam ser trabalhados na forma de divulgação científica, o que não só traria um valor maior às nossas atividades, mas que também poderia ser importante nas questões de motivação para a leitura, pensamento e discussão dos temas formadores.

Assim, cheguei à conclusão de que um conjunto de atividades poderia contemplar esses conceitos e talvez ser útil no estudo de Bioquímica:

(1)   Leitura dos capítulos do livro, um por vez;
(2)   Escolha de tema formador e discussão (em grupo)
(3)   Confecção e publicação de verbetes sobre os temas formadores na Wikipedia.

Ao final do semestre, devemos chegar a 18 temas formadores, e confecção de 18 verbetes. A avaliação será por participação e, para sair um pouco da rotina, pedi aos alunos que produzam uma obra de arte (qualquer tipo arte) que será apresentada como trabalho final do curso. Eu estou em dúvida se faço uma pintura ou um soneto, mas devo decidir isso logo para poder produzir algo que me pareça interessante. No primeiro semestre leremos os capítulos 1-15 e 29-32. Assim abordaremos os temas básicos de estrutura de biomoléculas e no final as questões de replicação e codificação da informação gênica com uma base bioquímica. Dessa forma a discussão do metabolismo ficará para o segundo semestre.


Espero não estar cometendo nenhum assassinato dos princípios pedagógicos que tentei adquirir com os estudos (comentários são bem vindos!). Seja como for, a experiência está sendo bastante interessante e estimulante. Estou muito curioso para ver como serão os resultados no final, mas o processo já está sendo um resultado importante. Salve Paulo Freire, o patrono da Educação Brasileira!!!

Comentários

  1. Eu só consideraria um ponto: a habilidade para acompanhar a produção final. Provas são mecanismos falhos mas cujo processo é rude e bem conhecido por todos. Em obras artísticas é possível que um aluno se perca em perfeccionismo (seria o meu caso pois meu apreço por arte é maior do que tudo) ou se sinta oprimido pela expectativa que as pessoas têm sobre produção artística (nem todo mundo se relaciona com arte de forma lúdica, muitas vezes é uma relação de devoção, só para citar um exemplo) e o resultado final não fique pronto ou razoável. E isso não teria a ver com a capacidade do aluno em relação à disciplina (Bioquímica) e sim a capacidade de lidar com o processo de criação artística. Então eu consideraria que acompanhar a produção do trabalho final pode ser algo necessário em algum nível, para evitar exageros ou faltas que nada tem a ver com o objetivo da disciplina. Um simples acompanhamento prático para ajustar as expectativas resolve.

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  2. Caro Alexander, obrigado pelo feedback! Eu também tinha esse medo, mas no final do processo tivemos uma experiência muito leve e recompensadora. A obra de arte serviu mais como uma reflexão final, por que a avaliação em si se deu em função dos trabalhos semanais. Eu e Carol ainda estamos organizando todo o material, mas em breve vamos publicar um balanço do processo para promover a discussão. Um grande abraço!

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