A paciência e a importância - parte 5

Um aspecto talvez pouco valorizado do fazer científico, que tem a ver com as questões de  repetição discutidas anteriormente, é a leitura e citação de artigos da área. Isso não costuma receber destaque, mas o próprio ato de ler, citar e discutir o trabalho dos outros é um ato de replicação. Essa prática é amplificada em artigos de revisão, mas em qualquer trabalho científico essa atividade silenciosa de revisita e ponderação sobre o conhecimento prévio da área é fundamental.

Tendo como ponto pacífico que a releitura e a reescrita do conhecimento são fundamentais, o que é necessário para que essa seja uma atividade produtiva e valiosa do ponto de vista intelectual? Muito se discute a respeito da citação vazia, dos círculos de auto-citação, ou mesmo da citação equivocada. Num mundo pautado pela velocidade, pelo progresso e pela propaganda, é importante relembrar os valores fundamentais de cada uma de nossas atividades. E o valor de uma releitura e de uma citação está na análise consciente e profunda do conhecimento embutido em um documento. 

Para que se tenha uma análise desse tipo são necessários inúmeros fatores, entre eles o conhecimento prévio dos conceitos ou informações básicas. Ou seja, é necessário um investimento prévio por parte do pesquisador, da família, da sociedade, do mundo. Além disso, é necessário um mínimo de condições físicas como tempo, espaço, silêncio. E sem dúvida é necessário ter saúde mental. Para que alguém se dê ao trabalho de fazer uma leitura consciente da literatura de qualquer área é preciso ter no mínimo paciência e serenidade. Como alguém possuído por sentimentos de ansiedade, depressão, nervosismo, perseguição ou baixa auto-estima pode fazer uma avaliação isenta e ponderada sobre qualquer documento?

Nesse sentido preocupa-me muito a maneira como a ciência é construída hoje no Brasil. O motor de nossos laboratórios de pesquisa são os alunos de pós graduação, que têm pouco ou nenhum suporte do ponto de vista de sua saúde física ou mental. A questão da saúde física acaba por ser minimizada em função da juventude, mas os casos que vêm à tona mostram uma situação completamente fragilizada, aonde as instituições têm pouca condição de dar assistência a alunos doentes. E não há  salvaguardas para esses casos pelas agências de fomento ou programas de pós-graduação. 

Num mundo aonde o conceito de saúde deixou de ser a ausência de doença há décadas, para ser visto como o bem estar do ser humano nos mais diferentes níveis, incluindo o sócio-econômico, é lamentável ver que em um contexto mais amplo a saúde dos cientistas brasileiros, e da sociedade como um todo, é precária.

Do ponto de vista da saúde mental o problema é muito mais complexo, e muito mais urgente. Nossos alunos e pesquisadores têm pouco ou nenhum acompanhamento psicológico. O contexto das discussões é quase sempre extremo e punitivo, focado nos desvios de conduta. Os setores de recursos humanos em geral são burocráticos, pouco propositivos e gerenciadores de crises. Isso não significa que não sejam extremamente competentes na sua prática. Mas precisamos de uma política clara e eficiente de cuidado com a saúde física e mental dos indivíduos, especialmente dos alunos de pós graduação e pós-doutores.

É fundamental que discutamos as perspectivas humanas da carreira científica de uma maneira mais acessível, inclusiva e presente, abordando questões as mais diversas como sexualidade, doenças, idade, religião, uso de drogas, ética humana, ética animal, limites e transgressões, dinheiro, carreira, política, sociedade, entre outras. A qualidade da pesquisa, muitas vezes decantada pela qualidade das técnicas ou dos equipamentos, depende enormemente da qualidade do ser humano que os pilota. Não podemos nunca nos esquecer disso, pois os custos e o perigo para a sociedade e para o mundo de uma ciência doente são imensuráveis. 

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