Vendem-se moscas
Uma das atividades que considero mais
importantes na nossa rotina do laboratório é a manutenção das nossas criações de
insetos. Nós mantemos duas espécies que são modelos de insetos vetores de
doenças, o barbeiro Rhodnius prolixus
e o flebotomíneo Lutzomyia longipalpis (mosquito palha).
Elas são interessantes por que, entre outras características importantes, são
vetores dos parasitas Trypanossoma cruzi
e Leishmania infantum, causadores da
Doença de Chagas e da Leishmaniose Visceral, respectivamente.
(Um pequeno parêntese linguístico. Em uma banca
de mestrado de nosso grupo, há uns dois anos, tomamos um puxão de orelhas do queridíssimo Prof. Gustavo Rezende da UENF, que nos admoestou sobre o uso do termo colônia
apenas para insetos sociais. Passei então a me referir aos nossos insetos como
criações...)
Embora para o público em geral insetos sejam pragas
ou pestes que aparentemente surgem do nada (há um inegável envolvimento de
insetos nas históricas teorias da geração espontânea, que foram derrubadas pelo
brilhante cientista francês Louis Pasteur, entre outros) e que crescem explosivamente
se nutrindo de qualquer coisa, criar insetos em laboratório, de
forma organizada, contante, e em grande quantidade, é difícil e extremamente
trabalhoso.
Há várias razões para isso. A primeira é a grande
quantidade de conhecimento a respeito do inseto que é necessária para que se
consiga mantê-lo vivo em cativeiro. Inicialmente, é necessário saber o que ele
come. Nos casos em que há metamorfose completa, a alimentação das larvas e dos
adultos costuma ser completamente diferente. É preciso saber a temperatura, a
umidade, o tipo de suporte e de espaço que os adultos precisam para se apoiar e
voar, aonde eles gostam de botar ovos. É preciso controlar aspectos como a
densidade populacional e manter os insetos protegidos de agressões e perigos,
como luz do sol, calor, vento, agitação, predadores ou patógenos.
Além dos fatores descritos acima, que são
completamente desconhecidos para a maioria das espécies biológicas, há algumas
condições agravantes que dificultam a manutenção de criações de insetos. A
primeira é o confinamento. Algumas espécies, como Gafanhotos e borboletas,
necessitam de espaço para voar. Além disso, manter um grande número de
indivíduos da mesma espécie de inseto em um espaço fechado deixa essa população
especialmente vulnerável à introdução de parasitas, parasitoides ou patógenos.
Uma vez, quando trabalhava na USP, nossa criação de baratas domésticas, com
cerca de 10 mil indivíduos em duas caixas d’água, foi dizimada em algumas
semanas por uma vespa que colocava os ovos dentro das baratas. Fica aqui o meu
tributo ao valente Dr. Ivan Bragatto, que me ajudou na época a recolher os cadáveres,
limpar as caixas, e recomeçar a criação.
Outro problema é que a manutenção de uma
população em cativeiro implica em cruzamentos viciados, entre insetos da mesma
linhagem. Na verdade, sob um ponto de vista isso é muito desejável, pois quanto
mais homogênea for a população de insetos melhor ela será para experimentos de
laboratório. Contudo, ao mesmo tempo em que uma população endogâmica é boa para
experimentação, ela é igualmente suscetível a doenças, muitas vezes apresentando
uma fragilidade cada vez maior ao longo das gerações. Em razão disso, para
algumas espécies só é possível manter criações ¨abertas¨, assim chamadas por
que de tempos em tempos é necessário introduzir indivíduos selvagens, coletados
no campo, para restabelecer uma variedade genética saudável. E às vezes os insetos
coletados no campo vêm com parasitas ou patógenos internos...e dizimam a população
sem querer.
Dadas todas essas dificuldades, os
especialistas que se dedicam à arte de estabelecer criações de insetos de
laboratório não são apenas heróis da ciência, mas são profissionais valiosos
para a economia. Muitos insetos têm valor econômico, e criações em larga
escala, chamadas fábricas, são fonte de renda e grandes negócios para o país. Exemplos
históricos importantes são o bicho da seda ou mesmo a criação de abelhas, que é
fundamental não só em função dos seu produtos diretos (cera, mel e própolis)
mas em função da polinização das plantas ao redor. Outros exemplos indiscutíveis
são as criações de moscas das frutas esterilizadas, que são usadas na
fruticultura do Nordeste, e as criações de diversas vespas parasitóides,
utilizadas para o controle de inúmeras pragas agrícolas no Sudeste. No futuro,
não tenho dúvidas que teremos a disseminação de diferentes estratégias de
controle de doenças como a Dengue, Zika ou Chikungunya, que necessitarão de
fábricas de mosquitos, o que tende a ser um grande negócio para o país.
No nosso laboratório, as criações de
flebotomíneos (mosquitos-palha) e de barbeiros não só geram o material que é a
base de nossa pesquisa científica, mas também possibilitam a colaboração e
ajuda com diversos outros grupos de pesquisa. Há algum tempo, ao fazer um
relatório de atividades, relatamos o fornecimento de insetos, amostras ou dados
preparados a partir de nossas criações para mais de 20 grupos de pesquisa, no
Brasil e no exterior!
Outro aspecto que é pouco divulgado é a
comercialização de insetos de laboratório. Nós já fomos procurados por empresas
que querem testar seus produtos, geralmente inseticidas ou repelentes, e que
precisam justamente de um grande número de indivíduos da mesma espécie e em
condições bastante padronizadas para a experimentação. Também há empresas que
querem insetos para campanhas publicitárias, aonde a eficiência dos produtos é diretamente
demonstrada com os insetos. Nesses casos, o interesse recai sobre os flebótomos,
e há uma curiosidade que não posso deixar de compartilhar. Ao calcular os
custos de produção de um flebótomo de laboratório, chegamos a um valor de cerca
de um real por indivíduo. Como um flebótomo pesa cerca de 0,001 grama, isso faz
que com a nossa produção tenha o assombroso custo de 1 milhão de reais o quilo, o
que certamente faz com que a carne de flebótomo seja uma das mais caras já
registradas na história da produção animal!
Nas próximas postagens, vou continuar contando algumas anedotas desse ramo tão interessante da economia e da ciência, além de compartilhar algumas receitas de sucesso. Espero que gostem e, caso vocês conheçam alguém que esteja precisando de moscas, não hesitem em passar o meu contato!
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