O doce controle do mosquito-palha
Hoje quero comentar em mais detalhe o nosso
último artigo que foi publicado em 2018. Trata-se se um trabalho sobre a
utilização de iscas açucaradas com compostos naturais para o controle de
flebotomíneos (também conhecidos como mosquitos-palha, birigüis ou tatuquiras)
transmissores do parasito causador das Leishmanioses. Esse trabalho é muito gratificante
para mim por vários motivos.
O primeiro é que ele é a coroação do esforço de
uma excelente aluna, a agora Mestra Tainá Neves Ferreira. Mestra Tainá realizou os experimentos e organizou os dados para o manuscrito durante o seu
mestrado. A quantidade de experimentos realizada por Mestra Tainá foi muito
grande, e a sua disciplina e dedicação foram realmente fora de série.
O segundo motivo é que ele é inspirado em uma
linha de pesquisa belíssima dos meus antigos orientadores da USP, Profs. Clélia
Ferreira e Walter Terra. Aqui vale a pena um comentário pessoal. Durante minha
formação, como aluno de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doc no
grupo da USP, eu estudei uma classe de
enzimas pouco conhecida em insetos, as beta-1,3-glucanases. Apesar de ter-me
apaixonado completamente pelo assunto, tanto que me divirto com ele até hoje, às
vezes ficava com uma sensação de patinho feio nas reuniões e seminários do
laboratório. E isso por uma razão bioquímica bastante trivial: existem
pouquíssimos substratos e inibidores para beta-1,3-glucanases e, além disso,
não havia uma aplicação óbvia para os estudos dessas enzimas. Em comparação, as outras enzimas estudadas no laboratório, como beta-glicosidades e proteases,
tinham dezenas de substratos e inibidores disponíveis, permitindo uma série de
experimentos em cinética diferentes e, além disso, uma clara importância
prática no seu estudo, já que eram alvos conhecidos de compostos com atividade inseticida
em plantas.
Para aumentar ainda mais a minha possível miséria,
que por sorte não se concretizou, já que conseguimos dados muito interessantes
com as enzimas às quais me dediquei, os estudos com beta-glicosidases e
proteases eram conduzidos por alunos absolutamente espetaculares, um time de
primeiríssima. Sandro, Alexandre, Plínio, Adriana, entre tantos outros cientistas
que brilhavam nos seminários e reuniões do grupo. Nunca me esquecerei das
longas discussões sobre a purificação e caracterização de beta-glicosidases,
com experimentos cinéticos lindíssimos conduzidos pelo hoje Dr. Alexandre
Ferreira. E as análises espetaculares de especificidade e mutagênese sítio
dirigida apresentadas pelo hoje Prof. Dr. Sandro Marana. Seja como for, para
mim ficou uma lição importante, de como as reuniões de laboratório são
importantes, pois nos fazem pensar sobre assuntos que fogem aos nossos projetos
particulares, enriquecendo a formação dos alunos com resultados que podem aparecer muitos anos depois...
Já como pesquisador da Fiocruz, iniciei uma linha de estudo da digestão em insetos vetores, e começamos a
caracterizar algumas enzimas digestivas em flebotomíneos, tanto nas larvas como
nos adultos. Como esperado, encontramos algumas das enzimas que também são
encontradas em outros insetos, como alfa-glicosidase (ou maltase),
beta-glicosidase (ou celobiase) e trealase, entre outras. Tendo encontrado
essas enzimas, tivemos uma curiosidade: será que as enzimas de flebotomíneos
têm atividade sobre os mesmos substratos, e são inibidas pelos mesmos compostos
que inibem as enzimas de outros insetos?
Aqui vale a pena fazer um parênteses. Além da
detalhada caracterização cinética das beta-glicosidases de diferentes insetos,
o grupo dos Profs. Clélia Ferreira e Walter Terra já havia mostrado, em outros
artigos, como compostos derivados de plantas podem inibir essas enzimas, ou
atuar como liberadores de toxinas no intestino de insetos. Além disso, foi demonstrada
a capacidade desses compostos em inibir a trealase, uma enzima que é
absolutamente central no metabolismo de insetos, já que a trealose, seu
substrato, é o açúcar circulante na hemolinfa (¨sangue¨) desses organismos.
Os compostos em questão são conhecidos como
glicosídeos. Eles consistem em uma molécula que é formada por uma porção de açúcar
(a glicose, no caso) que é ligada a outras moléculas (aglicones) que têm
atividade danosa para o animal, seja pela capacidade de reação química com diferentes
alvos no intestino, seja pela inibição do processo digestivo, ou mesmo pela
liberação de compostos altamente tóxicos como o cianeto.
Como já se sabia que os glicosídeos esculina e
amigdalina tinham uma atividade inseticida importante sobre larvas de moscas,
besouros e borboletas, resolvemos testar se eles não teriam também atividade
sobre os mosquitos-palha adultos. Aqui é importante fazer também outro
comentário. Nós esperávamos que os mosquitos-palha fossem extremamente suscetíveis
a esses tipos de compostos de planta. Já havia sido observado que alguns
insetos têm adaptações para a ingestão dessas moléculas mas, nesse caso,
tratavam-se de insetos herbívoros, capazes de ingerir e mastigar folhas, frutos
e raízes da planta. No nosso caso, supõe-se que a alimentação principal que os
adultos de mosquitos-palha têm em plantas é o néctar de flores, com uma
eventual alimentação no suco de alguma fruta que tenha seus tecidos expostos. O
néctar é mimetizado em laboratório com uma solução de sacarose, que se usa para
molhar um algodão que é colocado em contato com os insetos, que a sugam
diariamente. Como o néctar é uma oferta atrativa da planta para insetos
polinizadores, não costuma ter compostos tóxicos, muito menos inseticidas!
Assim sendo, esperávamos que os flebotomíneos não estivessem acostumados (ou
adaptados) a ingerir esse tipo de composto danoso...
A ingestão de beta-glicosídeos como amigdalina
e esculina tem efeitos gravíssimos no desenvolvimento de larvas de besouros,
moscas e borboletas. Esses insetos, ao se alimentar desses compostos, perdem
peso, morrem, e na maior parte das vezes não terminam o seu ciclo. Qual não foi
nossa surpresa ao ver que, dependendo do composto, o efeito sobre os flebotomíneos
era mínimo, ou mesmo o contrário, aumentando a sua longevidade! Seja como for,
alguns desses compostos tiveram efeitos negativos significativos, diminuindo o
tempo de vida tanto de machos como de fêmeas do inseto. Isso foi testado
colocando o composto na solução de açúcar que umedecia o algodão e observando
quantos dias os insetos viviam, verificando a presença de insetos mortos na
gaiola diariamente (inclusive nos fins de semana...). Sem a dieta açucarada, os
insetos vivem pouquíssimos dias, cerca de 2-3 dias, e não são capazes de
encerrar o seu ciclo de vida, fazendo cruzamentos e colocando ovos (no caso das
fêmeas, elas ainda devem se alimentar de sangue para isso). Dessa forma, a
alimentação açucarada para os flebotomíneos é absolutamente obrigatória, e de
fato resultou numa boa forma de entregar esses possíveis inseticidas para essas
moscas.
Esse efeito reduzido na mortalidade dos insetos
nos levou a questionar se as enzimas de flebotomíneos, especialmente a
beta-glicosidase e a trealase, não seriam diferentes das de outros insetos, não
sendo inibidas, ou talvez não tendo atividade sobre esses glicosídeos.
Observamos realmente que as atividades em geral eram pouco alteradas pelos compostos,
embora tenhamos observado algumas alterações específicas tanto na trealase como
na beta-glicosidase. Contudo, de uma forma geral, os flebótomos pareciam muito
mais resistentes do que os insetos que já haviam sido estudados na literatura. Pensamos
em diferentes explicações para esse fenômeno, desde o fato de que estávamos
testando adultos e não larvas (como nos trabalhos do grupo da USP), até a
presença de bactérias no intestino dos flebotomíneos, ou mesmo o modo diferente
de ingestão de açúcares que esses insetos apresentam, no qual o açúcar ingerido
é estocado em um compartimento à parte do intestino (divertículo).
Apesar da nossa frustração, não deixamos de observar
que alguns dos compostos reduziam em alguns dias a vida dos insetos. Os
melhores eram a esculina, com uma redução de 17 dias de vida para 15 nos machos
e de 15 para 13 dias nas fêmeas, e a mandelonitrila, com uma redução para 5 e
12 dias de vida em machos e fêmeas, respectivamente. Essa redução no tempo de
vida não deixava de ser interessante, pois afinal, além de diminuir a chance de
machos e fêmeas se encontrarem e copularem, diminui também a chance de uma
fêmea encontrar um vertebrado para sugar sangue. No caso, para que ocorra a
transmissão de Leishmaniose, a fêmea do mosquito-palha tem que se alimentar
duas vezes de sangue, primeiro em um hospedeiro infectado, depois em um
hospedeiro saudável. Esse processo leva pelo menos 9 a 10 dias, na melhor das
hipóteses e a chance de que ele ocorra com sucesso cai bastante se o inseto
passar a ter uma vida média de 12 dias. Assim, ficamos mais animados com os
resultados, pois pelo menos os compostos estariam diminuindo as chances de
transmissão da doença.
Decidimos finalizar o estudo testando uma idéia
que parecia interessante, mas que seria na verdade apenas comprobatória. Como
os insetos estariam debilitados pela ingestão de compostos tóxicos, talvez
fosse possível que a infecção por Leishmania tivesse um efeito mais severo na
sua sobrevida, o que diminuiria ainda mais a possibilidade de transmissão da
doença. De fato, a infecção por Leishmania tem certos efeitos deletérios no
inseto, especialmente quando este realiza a segunda alimentação sanguínea.
Assim, iniciamos esse teste realizando um controle básico, que era verificar se
os compostos não teriam alguma atividade inibitória ou estimulatória sobre os
parasitas, o que poderiam mascarar ou atrapalhar a intepretação dos resultados de
sobrevida dos insetos.
E qual não foi a nossa surpresa ao ver que dois
dos compostos utilizados, justamente a mandelonitrila e a esculina, tinham uma
atividade fortíssima contra a Leishmania! Para nosso assombro, a mandelonitrila
era capaz de matar todos os parasitas em cultura em concentrações 10 a 100
vezes menores do que as utilizadas sobre os insetos. Além disso, a
mandelonitrila era capaz de matar todas as espécies de Leishmania testadas,
Leishmania mexicana, Leishmania amazonensis, Leishmania infantum e Leishmania
brasiliensis! Depois da confirmação e análise muito cuidadosa de um resultado
tão bombástico, passamos a ver os experimentos com outro prisma: se alimentássemos
os insetos com iscas açucaradas contendo mandelonitrila, o que aconteceria com o parasita?
Assim, colocamos a mandelonitrila na solução açucarada
dos insetos, e as fêmeas foram alimentadas com sangue infectado com
parasitas da espécie Leishmania mexicana. Escolhemos essa espécie por que é um
bom modelo de associação com o nosso flebotomíneo de estudo (Lutzomia
longipalpis), e oferecia menos riscos de biossegurança para os estudantes. Para
nossa imensa alegria, observamos que não só o número de parasitas nos insetos
estava diminuído, mas também a porcentagem de moscas infectadas na população!
Esse resultado tem muitas implicações teóricas
e práticas. A primeira implicação teórica, a minha preferida, é que é mais fácil
curar o inseto vetor da infecção do que os cães ou seres humanos que carregam o
parasito, podendo essa ser uma forma eficaz de interromper o ciclo da doença.
Outra implicação está no uso de compostos naturais para o controle das
Leishmanioses, com um impacto ambiental muito menor do que os inseticidas
químicos atualmente utilizados. É claro que os inseticidas que são usados no controle desse insetos estão entre as melhores ferramentas que temos no momento, mas sabemos
que seu uso prolongado tende a selecionar flebotomíneos resistentes, além de
ter um impacto negativo em populações de insetos importantes como as abelhas.
Das implicações práticas da pesquisa, nós não
só encontramos novos compostos com ação anti-Leishmania, mas também demos um
novo formato a uma ferramenta que já é tradicionalmente utilizada para o
controle de flebotomíneos. Em Israel e no Irã, são utilizadas iscas açucaradas
com sucesso, mas nesses casos elas contém piretróides e ácido bórico, ambos
inseticidas químicos, com o objetivo de eliminar as populações de flebotomíneos.
Diversos aspectos técnicos dessa nova ferramenta que desenvolvemos precisam ser
estudados, como a sua duração, raio de ação e efetividade em condições de campo,
mas de qualquer forma os resultados são muito promissores. No momento, estamos
em busca de novos compostos, que tenham uma ação maior do que a mandelonitrila,
mas os testes preliminares para o uso dessas iscas devem ser iniciados ainda
esse ano.
Um questionamento que foi realizado durante a
defesa do mestrado de Tainá, e que gerou um estudo muito interessante que complementou
nossos achados, veio da excelente Dra. Yara Traub-Cseko: como poderíamos ter
certeza que os insetos estavam mesmo ingerindo a solução açucarada? Não seria possível
que eles estivessem recusando a solução, por ter um gosto ou cheiro ruim, e
nesse caso estivessem morrendo de fome? Em função dessa observação da Dra.
Traub-Cseko, desenvolvemos e aplicamos testes de repelência, que mostraram que
a mandelonitrila não espanta os insetos, e técnicas para medir quanto de açúcar
cada mosquinha ingere. Fizemos isso colocando corantes alimentícios na solução
açucarada com mandelonitrila e, além de obter mosquinhas coloridas (vermelhas,
azuis, verde, rosa, entre outras cores), medimos pela primeira vez a quantidade
de açúcar que um flebotomíneo ingere. Experimentos parecidos com a esculina
deram resultados semelhantes, com o toque adicional que a esculina é fluorescente,
e pudemos observar mosquinhas brilhando no escuro. De qualquer forma, nem a
mandelonitrila nem a esculina parecem ter gosto ruim para as moscas, que não
estavam morrendo de inanição.
O artigo está publicado na revista internacional
Parasites & Vectors e pode ser acessado AQUI. Além disso, foi objeto de uma
maravilhosa reportagem no jornal Folha de São Paulo (AQUI), pela excelente
repórter Marina Estarque. Contamos também com a ajuda do Setor de Jornalismo do
IOC, especialmente dos queridos Maíra Menezes, Raquel Aguiar, Gutemberg Brito e
Josué Damacena. Também participaram do estudo pelo laboratório Samara Costa, Caroline
da Silva Moraes, além dos fantásticos colaboradores Drs. Daniela de Pita-Pereira e
Reginaldo Brazil, ambos do IOC. Vale também destacar a participação fundamental
do queridíssimo Dr. Hector Manuel Diaz-Albiter, que trabalhou conosco durante o
Programa Ciência Sem Fronteiras e que agora é Prof. da Universidade ECOSUR do
México. Agradeço a todos e espero que gostem do resultado final. Um grande
abraço!
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