A digestão de insetos - parte 10: a digestão de açúcares
Continuando a nossa discussão sobre a digestão
em insetos, quero abordar hoje a primeira categoria de enzimas digestivas que
destaquei anteriormente: as carboidrases, ou enzimas que digerem açúcares. Elas
recebem esse nome por que enzimas geralmente são nomeadas colocando o sufixo
-ase no nome do seu substrato, e o outro nome bioquímico para açúcar é
carboidrato. Além disso, carboidrase soa melhor do que carboidratase...
Açúcares, em geral, são compostos de átomos de carbono,
oxigênio e hidrogênio que se caracterizam por terem cadeias cíclicas de 5 ou 6
carbonos, que podem estar ligadas entre si por ligações glicosídicas. Um
exemplo de açúcar bastante comum na natureza é a sacarose (o nosso famoso
açúcar de cozinha), que consiste em uma molécula de glicose (açúcar simples ou
monossacarídeo) ligada a uma molécula de frutose (outro açúcar simples ou
monossacarídeo) como demosntrado no esquema abaixo:
O que as carboidrases fazem durante a digestão
de açúcares é basicamente separar as unidades de monossacarídeos, hidrolisando
as ligações glicosídicas e liberando açúcares simples que podem ser absorvidos
pelas células intestinais, como no esquema a seguir:
O exemplo acima mostrou a digestão de um
dissacarídeo (duas unidades de açúcares ligadas) em dois monossacarídeos
(açúcares simples e absorvíveis). Acontece que na natureza a maioria dos
açúcares se encontra na forma de cadeias longas, muitas vezes ramificadas e
complexas, às vezes com diferentes grupos químicos ligados. Dessa forma, as
enzimas têm o trabalho de degradar essas longas cadeias até chegar aos açúcares
pequenos. Essas cadeias longas recebem o nome de polissacarídeos, e dois
exemplos abundantes na natureza são a celulose e o amido:
Embora tanto a celulose como o amido sejam
polímeros compostos apenas por glicose, existe uma diferença fundamental entre eles.
Na celulose as ligações glicosídicas são do tipo beta, e no amido as ligações são
do tipo alfa. A diferença entre esses tipos de ligação é estrutural, em relação
à direção na qual se posiciona uma molécula de açúcar em relação à outra, tomando
como base o carbono número um de um dos açúcares, como desenhado abaixo:
Assim sendo, uma diferença básica entre enzimas
digestivas é o substrato reconhecido. Carboidrases que reconhecem a ligação
alfa não reconhecem a ligação beta, e vice-versa. Essa é uma das razões fundamentais
pelas quais organismos que têm apenas amilases digestivas, como os seres
humanos, não conseguem digerir a celulose, e organismos que têm apenas celulases
não são capazes de digerir amido. Retomando a regra apresentada acima, muitas
enzimas costumam receber o nome de seus substratos com sufixo -ase, de forma que
diferentes enzimas capazes de reconhecer diferentes cadeias de açúcares já
foram descritas e nomeadas como na tabela a seguir:
Substrato
|
Enzima
|
Amido
|
Amilase
|
Celulose
|
Celulase
|
Quitina
|
Quitinase
|
Pectina
|
Pectinase
|
Xilana
|
Xilanase
|
Ágar
|
Agarase
|
Carragenana
|
Carragenase
|
Uma outra característica importante de carboidrases
é o tamanho do substrato que elas reconhecem. Há enzimas que preferem substratos
longos, polissacarídeos, sendo chamadas de polissacaridases. E há enzimas que
reconhecem apenas substratos pequenos, sendo chamadas de oligossacaridases ou
dissacaridases, reconhecendo oligossacarídeos (oligo significa pouco, então
esses acúcares apresentam poucas unidades glicosídicas, entre 2 e 10, por
exemplo) e dissacarídeos (duas unidades glicosídicas, como na maltose e na
celobiose acima).
Na verdade, a preferência das enzimas digestivas
por um tamanho de substrato é a base para um dos conceitos mais importantes da
digestão, que é o de fases da digestão. São definidas até três fases de
digestão dependendo da complexidade do substrato e das enzimas envolvidas:
digestão inicial, intermediária e final. A digestão inicial é o reconhecimento
e quebra de cadeias longas do substrato em cadeias menores ou oligossacarídeos.
A digestão intermediária é a redução de tamanho dos oligossacarídeos até
dissacarídeos, e a digestão final é a quebra de dissacarídeos em monossacarídeos
e absorção desses açúcares pelas células intestinais. Essas três fases são
representadas abaixo:
Dessa forma, polissacaridases atuam na digestão
inicial, oligossacaridases atuam na digestão intermediária e dissacaridases
atuam na digestão final. Um outro nível de complexidade pode ocorrer, contudo,
quando consideramos as polissacaridases, pois algumas enzimas que reconhecem o
polissacarídeo preferem as regiões internas da cadeia, sendo classificadas como
endo-enzimas, ou endopolissacaridases, e outras enzimas reconhecem as pontas da
cadeia, removendo açúcares pequenos diretamente, sendo conhecidos como
exo-enzimas, ou exopolissacaridases, como demonstrado na figura a seguir:
Em relação a oligossacaridases e
dissacaridases, ainda há um outro tipo de nomenclatura e diferenças a
considerar. Algumas dissacaridases são extremamente específicas para seus
substratos, recebendo o nome deste com o sufixa -ase. Como exemplos, temos a sacarase
(digestão de sacarose), maltase (digestão de maltose) ou trealase (digestão de
trealose, um açúcar comum em fungos e insetos). Outras dissacaridases, por exemplo,
reconhecem apenas um dos monossacarídeos terminais e o tipo de ligação, sendo
capaz de remover esse açúcar a partir de diferentes substratos. O nome da
enzima, nesse caso, descreve o tipo de ligação hidrolisada e o monossacarídeo
removido. Por exemplo, temos a alfa-glicosidase, uma enzima que remove resíduos
de glicose terminais em substratos pequenos quando estão ligados por uma
ligação glicosídica do tipo alfa. Outros exemplos seriam a beta-glicosidase,
alfa-fucosidase ou beta-galactosidase, que removem resíduos de glicose, fucose
ou galactose em ligações beta, alfa e beta, respectivamente.
Dessa maneira, um sistema completo de digestão
de açúcares é composto por uma ou mais polissacaridases, e dissacaridases
capazes de hidrolisar todos os dissacarídeos gerados durante a digestão. Como
exemplo, um sistema celulolítico (digestão de celulose) é constituído em muitos
organismos como a reunião de uma endo-celulase (clivagem da cadeia interna),
duas exo-celulases diferentes (que recebem o nome de celobiohidrolases e
removem celobiose das pontas da cadeia) e celobiase, ou beta-glicosidase, que
hidrolisa a celobiose (dissacarídeo em maltose) em dois resíduos de glicose, os
quais são absorvidos pelo intestino.
Dessa forma, o tipo de açúcar que um organismo
consegue digerir depende das suas enzimas digestivas, e isso explica por que
muitos insetos são capazes de digerir polissacarídeos que são considerados
refratários para os seres humanos. Os exemplos mais conhecidos são a digestão
de celulose por cupins, besouros e formigas, e a digestão de quitina por
insetos predadores ou fungívoros. Espero que tenham gostado e até a próxima!
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