Number one

 



HISTÓRICO


O quadro "Number One" foi feito após a retomada de minhas atividades presenciais no laboratório, em Setembro de 2020.  Ele faz parte de uma série de imagens que foram obtidas no laboratório ao longo do segundo semestre de 2020.


O CONCEITO

 

O quadro "Number One" traz uma série de referências externas, que vou abordar em sequência, sem que isso signifique maior ou menor importância para cada uma delas.


A primeira inspiração, que já abordei de outra maneira em "Blue Poles Revisited", é um dos meus pintores favoritos, Jackson Pollock. A imagem com manchas e borrões em um padrão "semi-caótico" é uma referência clara à técnica de drip painting, embora aqui o objeto tenha sido outro...mas o resultado final remete às imagens "cósmicas" obtidas pelo grande pintor norte-americano. Inclusive, a nomeação do quadro como "Number One" é uma referência óbvia, usando o estilo de Pollock de não dar nomes às suas criações.


Um plot twist na apresentação de "Number One" é a técnica que foi utilizada. O quadro foi criado por insetos. Triatomíneos, conhecidos como barbeiros, ingerem uma quantidade enorme de sangue (até dez vezes o seu próprio peso) e produzem também uma grande quantidade de fezes e urina. No laboratório, os insetos são alimentados e colocados logo em seguida em potes de vidro com apoios de papel dobrado, aonde os insetos descansam após comer. Logo após a alimentação, eliminam seus excretas no papel. Isso tem uma série de implicações. No contexto da Doença de Chagas, isso é importante por que o parasita Trypanosoma cruzi é eliminado nas fezes do barbeiro, e como ele defeca logo após sugar sangue, as fezes acabam ficando próximas ao lugar da picada. Dessa forma, uma coçada ou esfregada muitas vezes faz com que a pessoa se contamine ao colocar parasitas na ferida. No laboratório, é importante que os barbeiros façam suas fezes e urina no papel, por que como estão confinados em potes de vidro, eles morrem afogados no xixi se não houver o papel para absorver os seus excretas.  


Dessa forma, a organicidade obtida no padrão de manchas de "Number One" faz bastante sentido, por que afinal ele foi criado por seres vivos de forma relativamente desorganizada. Uma piada interna nossa criou-se com o nome da técnica, que seria drop painting, em contraposição ao drip painting de Pollock. Após a alimentação dos insetos, e a excreção das fezes e urina no papel, este foi retirado do pote, e colocado para secar à temperatura e umidade ambiente. Depois disso, o papel foi prensado entre cartolinas brancas antes de ser enquadrado. Como é um papel que é usado repetidamente para a manutenção de várias gerações de insetos (isso é fundamental para a biologia de triatomíneos por causa de sua associação com uma bactéria presente em suas fezes, mas essa é outra história), o papel acaba ficando impregnado com ovos que são postos no papel, e pedaços de insetos mortos que ficam grudados.


Aqui é preciso fazer um parêntese. A primeira pessoa que me chamou a atenção para a semelhança entre esses papéis e as obras de Pollock foi o Prof. Rod Dillon da Universidade de Lancaster, em uma reunião na qual estávamos discutindo alguns projetos de colaboração entre os laboratórios. Um exemplo claro daquele ditado "O acaso favorece a mente preparada" pois afinal, eu trabalho com barbeiros e estou em contato com esse tipo de "produção" dos insetos há mais de quinze anos...


Vale dizer que há uma certa novidade em "Number One" já que o ato da pintura foi realizado pelos insetos. Insetos são um tema clássico e bastante comum em arte, mas geralmente como objetos, em representações figurativas, pictóricas ou esculturas. Um paralelo pode ser feito com pinturas feitas por outros animais. São famosos os casos de elefantes ou macacos pintores, mas não consegui encontrar nenhum exemplo com insetos. O tema é bastante controverso, mas pelo menos no meu caso não há nenhum indício de sofrimento animal envolvido, e o produto foi resultado de uma prática de rotina de laboratório autorizada pelo Comitê de Ética e Uso de Animais em pesquisa da Fiocruz (CEUA-Fiocruz).


A última referência que quero comentar é Marcel Duchamp e sua arte "ready made". Guardadas as devidas proporções, "Number one" não deixa de ser o reposicionamento de um objeto do cotidiano como obra de arte, embora estejamos falando um cotidiano bastante específico, que é a criação de barbeiros em laboratório. Mas a coincidência entre o urinol de Duchamp e o nosso urinol de barbeiros não deixa de ser bastante irônica, não?



PARA SABER MAIS


Jackson Pollock

Drip Painting

Marcel Duchamp

Animal-made art

Barbeiros (Rhodnius prolixus)



MATERIAIS


Papel de filtro qualitativo (CIENLAB, 250g/m2). Fezes, urina, ovos e cadáveres de barbeiros da espécie Rhodnius prolixus.  Dimensões: 500mm x 200mm.


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