O Acaso e a Oportunidade - uma homenagem ao Prof. Dr. Mário Alberto Cardoso da Silva Neto



Há cerca de duas semanas, participei de uma defesa de doutorado belíssima, e quero compartilhar algumas impressões com vocês. Tratou-se da avaliação da aluna Stephanie Serafim de Carvalho (agora Dra. Stephanie), que apresentou o trabalho "Análise transcriptômica da fase pós-emergência em Aedes aegypti: Maior demanda por ATP na capacitação hematofágica". Ela foi orientada pelos queridíssimos e competentíssimos Professores Doutores Rafael Mesquita e Georgia Atella, ambos da UFRJ. Participaram da banca os luminares e incomparáveis Professores Doutores Pedro Lagerblad Oliveira da UFRJ e Thiago Venâncio da UENF.


Em linhas breves, Stephanie e seus orientadores testaram uma hipótese extremamente interessante e relevante: há um programa de transcrição gênica associado à preparação da fêmea do mosquito Aedes aegypti (o famoso mosquito da dengue e afins) para a ingestão de sangue? Além de trabalhar essa hipótese, eles reuniram uma quantidade enorme de dados para caracterizar esse fenômeno, ao qual deram o nome de "capacitação hematofágica". 


Aqui há duas coisas que vale a pena discutir de uma forma mais geral. A maioria dos insetos adultos não consegue realizar as funções fisiológicas que os caracterizam como adultos logo após atingir essa fase. Vale lembrar que insetos sofrem metamorfose e que, no caso dos mosquitos, os adultos emergem das pupas - casulinhos muito parecidos com os de borboletas, com a diferença de que no caso dos mosquitos eles ficam na água. Logo após a emergência, o mosquito adulto precisa de um certo tempo para que suas patas, asas e corpo "endureçam", já que logo após a emergência o seu exoesqueleto é frágil e mole. Além dessa maturação relativamente rápida do exoesqueleto e dos órgãos sexuais, que leva algumas horas, em fêmeas sugadoras de sangue há uma maturação dos dos órgãos internos como ovários, intestino e corpo gorduroso, que pode levar alguns dias dependendo da espécie. O que se sabia, em termos de fisiologia mais clássica, é que as fêmeas de Aedes necessitam de cerca de três dias para estarem "aptas" a sugar sangue, o qual é depois digerido e "convertido" em ovos. Foi a esse período de tempo necessário para a preparação das fêmeas de mosquito antes da alimentação sanguínea que os autores deram o nome de "capacitação hematofágica".


O segundo conceito geral, que é interessante para discutir aspectos mais filosóficos do trabalho, é a percepção geral que se tem do mosquito e de outros organismos hematófagos como "oportunistas". Essa é uma visão bastante antropocêntrica, pois associamos o caráter "oportunista" da alimentação com o fato de que o mosquito aproveita-se se um momento de distração nossa para, em poucos minutos, sugar a maior quantidade de sangue possível sem ser percebido. Isso é fundamental para a sua sobrevivência, já que ao percebermos um mosquito sugando sangue ele é imediatamente esmagado (ou quase, dependendo do nosso tempo e habilidade de reação). 


O que os dados de Stephanie e equipe mostram é que as fêmeas de mosquito podem ser tudo menos oportunistas, no sentido comum de estarem  "despreparadas". Eles mapearam centenas de genes que são especificamente expressos na cabeça e no corpo do mosquito durante a sua maturação. Esses genes foram agrupados em processos fisiológicos que estão relacionados à preparação da cabeça, dos ovários, do corpo gorduroso e do intestino. Observações extremamente interessantes como um maior metabolismo oxidativo na cabeça, expressão de genes relacionados à divisão celular, poliploidia e morte celular programada no corpo, apontam conclusivamente que a fêmea do mosquito possui um extenso pré-programa genético que a prepara para sugar sangue. Há algumas limitações no trabalho, como por exemplo não considerar a presença de estímulos basais, como ciclos de luz e calor, a alimentação açucarada, o próprio desenvolvimento da larva e da pupa, entre outros. Também foram "perdidos" os genes sensoriais em função do trabalho com cabeças e corpos inteiros. Mas trata-se de um percurso absolutamente brilhante, reunindo magistralmente os aspectos da boa ciência baseada em hipóteses com a excelência na aquisição e descrição de dados em larga quantidade.


Acredito que quem participou dessa defesa viu o nascimento e nomeação de um conceito e de uma linha de pesquisa. Houve um pouco de controvérisa com o termo "capacitação hematofágica", pois em inglês "capacitation" não costuma ser usado no mesmo contexto. Eu mesmo tenho um pouco de ressalvas por que o termo "capacitação" sugere que a fêmea recém emergida não é capaz de sugar sangue, e uma incapacidade pode ser um evento temporário ou definitivo. Pareceu-me mais adequado o termo "maturação", pois a fêmea de mosquito recém emergida, a não ser que aconteça um evento catastrófico, sempre poderá sugar sangue dentro de alguns dias, é apenas uma questão de tempo (e que aliás está em seu "programa"). O paralelo com a maturação sexual me pareceu mais conveniente. Além disso, fiz a sugestão de olhar para os promotores desses genes, e a sua organização física no genoma. Acho que talvez apareçam fatos novos e interessantes nessas linhas de investigação. Mas, como toda boa tese de doutorado, o trabalho de Stephanie abriu inúmeras perspectivas de estudos futuros, tanto do ponto de vista da regulação gênica quanto dos aspectos fisiológicos e funcionais ocorridos durante a capacitação hematofágica. Adicionalmente, há a beleza filosófica do exemplo biológico perfeito, obtido após milhões de anos de evolução, para a observação de que o acaso sempre favorece quem está bem preparado, e que isso ocorre até quando um mosquito suga o nosso sangue.


Para terminar, é fundamental comentar o aspecto humano e pessoal dessa defesa. Stephanie foi uma das últimas alunas de pós-graduação orientadas pelo Professor Doutor Mário Alberto Cardoso da Silva Neto. É impossível falar ou escrever sobre o Prof. Dr. Mário sem sentir uma grande emoção. Stephanie cometeu um deslize ao começar os agradecimentos com o Prof. Mário, sendo impossível a partir daquele momento segurar a emoção. Dessa vez a cerimônia remota, para minha sorte, me ajudou a esconder as lágrimas e a saudade. Sempre é difícil fazer um agradecimento justo num momento desses, pois uma defesa de doutorado, além do resultado de esforço e dedicação ímpar ao longo de anos por parte do aluno, é resultado de uma rede de pessoas que se reúnem e protegem, reforçam, investem, apoiam e acreditam na vocação maior do cientista. É mais difícil encontrar as palavras certas de agradecimento quando a pessoa não está mais entre nós. E o desafio é ainda maior, quando se trata de alguém que foi tão grande quanto o Prof. Mário. Poucas vezes na minha carreira me senti tão honrado em fazer parte de uma banca de doutorado. Parabéns, Stephanie.

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