O Coronavírus e a Ciência Brasileira - Uma Catástrofe Anunciada



No meio de tanta confusão sobre o cenário atual da pandemia (no Brasil dizem que até o passado é incerto), vi alguns colegas ligeiramente otimistas com algumas avaliações pontuais de que, frente ao desastroso resultado de políticas públicas baseadas em achismos, convicções pessoais, superstições ou mesmo malvadeza, em termos gerais a confiança da sociedade brasileira na ciência ¨aumentou¨. 

Eu não consigo compartilhar o otimismo desses colegas.

Pretendo fazer uma análise aqui dos perigos e ameaças que devemos enfrentar nos próximos meses ou anos. Esse é provavelmente o pior cenário possível, mas ele tem que ser analisado, justamente para que algo possa ser feito, e possam, os fatos e a sociedade, mostrar que eu estive errado.

A minha opinião atual é que o novo coronavírus matou a ciência brasileira. Se não matou, matará. Há inúmeras observações que apontam nesse caminho.

O primeiro impacto do coronavírus sobre a ciência nacional, óbvio e incontornável, é o da morte de cientistas. Para piorar o quadro, com a mortalidade maior em idades avançadas, muitas áreas do pensamento nacional estão perdendo cientistas que são referências históricas na área. Um pesquisador senior muitas vezes representa toda uma escola de pensamento, e os seus seguidores, visto o contato e a identidade íntima que se constrói no fazer científico, se sentem verdadeiramente órfãos, desolados e sem direção, com esse tipo de perda.

É preciso fazer um memorial e um levantamento dessas perdas. Em uma busca muito rápida na internet e no meu email, encontrei alguns nomes, mas certamente a lista é muito maior.

Sérgio Campos Trindade - MIT
Gabriel Barbosa de Abreu - estudante da Fiocruz (IOC)
João Pereira Arruda - funcionário da Fiocruz (RJ)
Mauricio Naoto Saheki (INI-Fiocruz)
Carlos Lessa - UFRJ

Quem puder ajudar, por favor adicione nos comentários para que eu possa atualizar essa lista. Além da morte de cientistas, há a morte de amigos e familiares. Apenas em meu laboratório três membros da equipe perderam familiares próximos. Tenho certeza que esse é um cenário que se repete em outros grupos de pesquisa. E, sem dúvida, há o impacto econômico, social e psicológico sobre as equipes de trabalho. Imensurável.

O segundo impacto, também óbvio, do novo coronavírus sobre a ciência brasileira é o da interrupção das atividades. A grande maioria das pesquisas nacionais não versa sobre vírus e não pode ajudar diretamente no trabalho de contenção e estudo do novo patógeno. Assim, foram tratadas como atividades não essenciais e tiveram seus trabalhos interrompidos, justamente para preservar as equipes de riscos de contágio desnecessários. Por exemplo, para vir trabalhar no meu laboratório no Rio de Janeiro a maioria dos profissionais vêm de trem, ônibus. Poucos têm veículo próprio. E não há maneira mais segura de contaminação do que utilizar o transporte público durante a pandemia. Portanto, assim como o meu, muitos laboratórios estão fechados há quase três meses. Por mais que todos estejam se desdobrando para minimizar os impactos dessa paralisação, realizando treinamentos ou eventos à distância, análise de dados e revisão de material em home office, a matéria prima - obtenção de dados experimentais - secou.

Uma questão importante é que uma boa parte dos trabalhos interrompidos apresentará dificuldades adicionais na sua retomada. Além da questão de insumos que se perderam com a parada dos trabalhos, perdendo a validade ou mesmo estragando sem terem sido usados até o final, muitas vezes a pesquisa depende de recursos que são sensíveis ao tempo. Um bom exemplo são as linhagens de microorganismos que terão que ser recuperadas, amostras que terão que ser coletadas novamente e, a meu ver um dos piores casos, trabalhos que tiveram sua série temporal interrompida, ou que tiveram modificações nas caracteríticas da coorte ou do conjunto de amostras analisadas. Em muitos casos, o trabalho terá que ser recomeçado quase do zero.

O terceiro impacto, difícil de colocar para discussão pública, é o da escassez adicional de recursos. O Brasil já vem dos piores anos em termos de financiamento científico de sua história recente. É natural, e ninguém questiona isso, que os pouquíssimos recursos destinados à pesquisa sejam utilizados para estudos sobre o novo patógeno, desenvolvimento de testes, fármacos, terapias, análises epidemiológicas. Mas isso não minimiza o fato de que todo o resto da comunidade científica ficará a ver navios, mais desassistida do que o usual, num contexto em que o governo não patrocina uma grande iniciativa nacional de pesquisa há anos. E, menos dramaticamente do que o incêndio do Museu Nacional, é provável que muitas linhas de pesquisa simplesmente morram por inanição de recursos, nesse e nos próximos anos.

O quarto tipo de impacto é relacionado ao anterior, mas atua numa perspectiva mais sutil e perigosa. É o desvirtuamento. Muitos grupos, ao ver que só há recursos para estudo de coronavírus, acabam por alterar suas prioridades de pesquisa, às vezes traçando paralelos e relações que em situações normais não seriam consideradas. Isso é diferente do recrutamento óbvio e urgente de profissionais capacitados a enfrentar a pandemia. Por exemplo, eu poderia mudar as minhas linhas de pesquisa, que atualmente são sobre mosquitos e afins, para trabalhar com qualquer coisa relacionada a covid, apenas para ter recursos para trabalhar em alguma coisa. Ou criar uma relação entre mosquitos e coronavírus que valha a pena ser investigada - não digo que isso não seja interessante e passível de investigação, mas certamente não é uma das frentes de combate prioritárias. E, com esse tipo de movimento, gasta-se tempo, cria-se ruído e dificuldade não só para a priorização emergencial dos recursos, mas também perde-se clareza a longo prazo das necessidades e interesses de cada um. Se eu posso trabalhar com coronavírus agora, por que voltar ao trabalho com mosquitos no futuro, sem financiamento à vista?

A quinta linha de ataque à ciência brasileira, nesse triste contexto, é que justamente se reforça um triste histórico das políticas públicas nacionais - o imediatismo, a política responsiva. E, como sabemos, isso vai justamente contra a lógica, a base e o valor do conhecimento e de políticas de fomento à pesquisa de qualidade, que é a prevenção, a previsão, o preparo da sociedade para eventos futuros. Reforçando o comportamento imediatista das autoridade e das comunidades, pode-se ter a ilusão de que o bom financiamento científico é isso, atender às necessidade do momento. Assim nos próximos anos teríamos financiamento erráticos de acordo com as emergências do momento, com duas consequencias: o Brasil nunca vai estar cientificamente preparado para nada, pois não se criam recursos dessa natureza em ciclos de 2 ou 3 anos (são necessários ciclos de 10, 20 anos!) e, além disso, o gasto público tende a ser pouco eficiente e com baixíssimo retorno, pois apenas respostas de curto prazo de execução poderão ser dimensionadas.

O imediatismo pode levar ao sexto tipo de ataque, que é o desencanto social e político. É óbvio que não será em poucos meses que se resolverá um problema ou uma deficiência de anos de investimento. Como é pouco provável que a ciência traga uma resposta em termos imediatos, no formato e no ritmo que a política imediatista pede, pode-se chegar à conclusão de que é inútil investir em ciência no Brasil, já que não se consegue resolver nem um problema tão urgente.

A sétima ameaça trazida pelo coronavírus é o afastamento do conhecimento científico de políticos e de camadas da sociedade com poder de decisão. Eu não me recordo, em mais de 25 anos de carreira, de um momento em que o discurso científico estivesse tão isolado e desprestigiado. O fato de termos uma classe política dominante que possui desprezo e ódio ao conhecimento científico é perigosíssimo para o país. A crise do coronavírus pode aumentar essa dicotomia, justamente pelo fato de que na ciência a presença de divergência e contradições é uma coisa natural, mas que vai em direção oposta à necessidade de um discurso e de uma resposta únicas frente a uma epidemia. Para que se possa fazer um balanço adequado dessa contradição, é necessário formação e experiência e, na falta de quem possa conciliar esses fatores, a tendência é de rejeição do conhecimento científico. E, novamente, um comportamento adotado durante a emergência pode ser adotado quando se encontrar qualquer outro problema que traga a mesma dificuldade. Ou seja, praticamente todos.

A oitava ameaça é a do distanciamento irreversível do público. É preciso reconhecer que a pandemia mostra claramente a falha clamorosa e completa das políticas de divulgação científica, de envolvimento científico, ou de educação científica em larga escala no Brasil. Acho que não é preciso discorrer muito sobre o assunto, que já foi esgotado por outros, mas de qualquer maneira é preciso repensar a maneira como os cientistas se relacionam com a sociedade. Se em um evento dessa magnitude e emergência, não se conseguem refutar discursos absurdos do tipo ¨a epidemia não existe¨ a ponto de que grande parte da sociedade não obedeça recomendações mínimas de segurança, isso significa que a ciência está quase que completamente contida na sua bolha. São cientistas fazendo divulgação para outros cientistas, ou para pessoas que já detêm aquele tipo de conhecimento mínimo que as caracteriza como ¨convertidos¨. A tendência do não reconhecimento desse afastamento é termos uma sociedade que em geral prescinde e despreza o saber científico, em uma escala e intensidade que podem ser impossíveis de enfrentar no espaço de uma geração.

A nona ameaça é o estabelecimento de politicas publicas indepentes ou contrárias ao conhecimento científico. Além de isso ser uma ameaça óbvia à sociedade, em termos sanitários, econômicos e sociais, é uma ameaça à própria existência da ciência, pois afinal, uma das razões de ser da pesquisa é trazer benefícios à sociedade. E esses benfícios são na maior parte das vezes transmitidos por políticas públicas, associadas ou não à iniciativa privada.

O que me traz à décima ameaça, que a meu ver é a mais perigosa. É o ataque que o coronavírus fará aos princípios filosóficos e éticos que baseiam o amor pela ciência nas gerações mais jovens de cientistas. Dentre inúmeros fatores, dentre eles uma curiosidade intrínseca, um dos motores que impulsiona o conhecimento científico - e a vontade de desenvolvê-lo -  é justamente fazer o bem, ajudar a sociedade a resolver problemas. Qual será o sentido, contudo, de desenvolver um conhecimento benéfico para uma sociedade que não está interessada em sua aplicação? Embora a maioria dos cientistas formados tenha estutura mental para fugir ao utilitarismo dessa colocação, e às turbulências da tempestade, os mais novos podem simplesmente considerar que a carreira científica não tem sentido em uma sociedade que não a reconhece. Esse já é um problema real no Brasil, mas que pode ser exacerbado por causa da pandemia. Em vez do otimista ¨agora o país vai perceber que precisa de cientistas¨, podemos cair na armadilha de que ¨não precisamos de cientistas¨, por inúmeras razões - substituição do conhecimento científico por outro tipo de conhecimento, ou por conhecimento científico de outros países, por exemplo. Quem vai conseguir convencer um jovem de que vale a pena estudar 10,15, 20 anos nesse cenário?

Não é preciso discutir aqui o custo enorme do despreparo científico do país. A falta de financiamento em pesquisa nos tornou deficientes em material humano, insumos, tecnologia para enfrentar praticamente todos os aspectos da pandemia, com custos humanos e econômicos avassaladores. Caso a ciência brasileira realmente sucumba frente às ameaças acima, a tendência é que essas catástrofes humanas e econômicas se repitam com frequência cada vez maior.

O que me traz à segunda parte desse texto. É preciso observar, reconhecer e propagandear que, já que foi a falta de conhecimento científico que nos colocou em situação tão vulnerável e desastrosa, será apenas o conhecimento científico que poderá nos trazer possibilidades e esperança de superação dessa crise e desse momento. Há inúmeros argumentos que reforçam a necessidade de investir em ciência, com quantidade e qualidade de recursos cada vez maiores nos próximos anos. Mas o mais óbvio é a própria mudança na sociedade e na economia que a pandemia está causando. Serão necessários novos produtos, novos profissionais, novas possibilidades de negócio para a nova economia. E, como qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento da realidade atual sabe, novidades apenas surgem quando há novo conhecimento. Se o Brasil estava mal preparado para a economia 4.0, é necessário preparar o país para a economia 5.0. E a única maneira de fazer isso é formando pessoal altamente qualificado, criando novidades em todas as escolas do saber, criando conexões novas entre as pesquisas e os agentes econômicos e, antes de mais nada, criando novas pesquisas, para o futuro.

Eu realmente espero estar errado em todas as previsões que fiz acima, menos na última. Que os amigos possam me cobrar daqui a dez anos, pelo texto mais escandalosamente fora da realidade que já foi escrito nesse blog. 


Comentários

Postagens mais visitadas