A raça e a ciência




Qualquer pessoa mais informada certamente está ciente dos protestos que vêm ocorrendo em diferentes países, iniciados nos EUA, em resposta ao assassinato de George Floyd. Em maior ou menor escala, o que se questiona são as diferentes formas de racismo, especialmente em relação aos negros e pardos. Não é necessário percorrer aqui sobre as estatísticas vergonhosas de violência, expectativa e qualidade de vida, desempenho educacional ou sócio-econômico. O racismo em nossa sociedade (e na de outros países) tem consequências horríveis para todos os aspectos do país, sejam eles sociais, econômicos, morais e filosóficos. Mas qual seria o papel da ciência em uma questão tão conturbada e intrincada?



Uma participação da ciência nesse debate provém da própria definição do conceito de raça e da sua aplicação. Diferentes ramos da ciência, como a estatística, a biologia, a antropologia e as ciências sociais, foram utilizados ao longo da história para justificar o preconceito e a discriminação de diferentes raças em prol da raça branca. É verdade que posteriormente essas ciências, na maioria dos seus corpos técnicos, foram as mesmas que descontruíram esse significado, mostrando que as diferenças raciais não tem, no conjunto das populações, implicações biológicas significativas além da aparência externa dos seres humanos - não há diferenças genéticas, psicológicas, cognitivas, ou mesmo anatômicas que justifiquem um tratamento ou desempenho diferenciado desses grupos na sociedade. Afora algumas condições ou predisposições à enfermidades em populações específicas de cada raça, podemos dizer com muita segurança que todos os seres humanos são iguais, no sentido de pertencer ao mesmo grupo biológico. No Brasil isso foi magistralmente detalhado pelos estudos do grupo do Professor Sérgio Pena da Universidade Federal de Minas Gerais que mostram que, em geral, independentemente da aparência, a maior parte dos brasileiros possui uma herança genética parecida, com misturas de genes de origem africana, européia e indígena.



Um outro papel da ciência nos debates de raça é justamente observando as diferenças, não só em termos físicos, entre as raças, mas também em termos sócio econômicos. Aqui, é importante destacar a diferença de enfoque e justificativa. É importante estudar as diferenças entre as raças do ponto de vista médico, por exemplo, para desenvolver abordagens mais efetivas para problemas ou condições que sejam específicos de cada grupo humano. Da mesma maneira, é importante entender o impacto ou relação entre a questão racial e problemas sociais e econômicos justamente para que eles sejam melhor enfrentados - e não para justificar uma política segregacionista.



Além disso, é importante refletir como as questões raciais afetam a representatividdade de diferentes grupos da sociedade na ciência, não só em termos de sua participação em atividades científicas, mas também no impacto que o fazer científico tem na vida e no cotidiano desses cidadãos.



Um movimento óbvio e simples é perguntarmos qual é a composição racial dos nossos grupos de pesquisa. Ela reflete o conjunto da sociedade em que estamos trabalhando? É claro que nessas questões é importante considerar a enorme diversidade da população brasileira e seus regionalismos. A resposta não será a mesma no Pará, em Pernambuco, Rio de Janeiro ou Paraná. Fazendo um levantamento rápido (mesmo por que não estou considerando um elemento fundamental nesses estudos, que é a autodeclaração), percebo que 36% dos componentes do meu grupo de pesquisa (com 28 pessoas) são negros ou pardos. Isso é muito ou pouco? A última pesquisa que encontrei do IBGE mostra que no Sudeste esse porcentual é de 48,5%. Se formos olhar para esse critério, os negros e pardos estão subrepresentados no meu laboratório e é preciso fazer algo a respeito...



Contudo, há muitas armadilhas nesse racional. Além de estar olhando apenas para um momento, é um grupo muito reduzido, sujeito a grandes variações pela entrada ou saída de apenas poucos indivíduos. E há outras questões de representação - ao mesmo tempo, o grupo tem 64% de mulheres. Nesse sentido, aparentemente as questões de gênero não parecem ser um problema, em termos de discriminação de mulheres. Contudo, um dado me chamou muito a atenção - temos apenas um indivíduo negro ou pardo do sexo masculino. É claro que não faz sentido extrapolar essas questões de um laboratório para a sociedade, mas seria interessante saber como esses percentuais estão representados em uma escala mais ampla na ciência brasileira. 



Eu me lembro do extranhamento que tive, há alguns anos atrás, quando a plataforma Lattes me perguntou de que raça eu era. Isso me remete a uma fala de um escritor brasileiro, Anderson França, de que brancos ¨não tem raça¨. O que ele quer dizer (acho) com isso é que brancos não precisam pensar na sua raça o tempo todo, como negros, pardos ou índios. Na época respondi e esqueci a questão, pelo menos nesse contexto específico da Plataforma Lattes. Ao mesmo tempo, resgatando reminiscências, percebo quão poucos colegas negros tive na escola, na faculdade, quase nenhum na pós-graduação e poucos ao longo da carreira científica. No Instituto Oswaldo Cruz, que é um lugar especialmente preocupado com políticas de recursos humanos e de inclusão, posso contar nos dedos da mão quantos colegas cientistas negros ou pardos fazem parte do quadro. Acho que se fizermos um levantamento de negros ou pardos em cargos de chefia, ou mesmo com distinções acadêmicas (como por exemplo, bolsas de produtividade 1A do CNPq) o cenário será deplorável. É absolutamente urgente fazer algo para mudar essas questões.



Ao mesmo tempo, é interessante ver como as questões de representação estão subjacentes ao nossos temas de pesquisa. No laboratório estudamos insetos vetores de Doença de Chagas, Leishmaniose, Dengue e outras arboviroses tropicais. Nos seminários é comum apresentar fotos de portadores, para ilustrar casos graves, além de sensibilizar o público para a importância do problema. E, há muito tempo, eu percebo que as fotos que usamos rotineiramente são todas de pessoas negras ou pardas (às vezes índios). É difícil ver uma apresentação que use fotos de caso graves de Leishmaniose em pessoas brancas, por exemplo. Para mim isso é um reflexo da questão sócio-econômica embutida nesses agravos, mas há alguns aspectos interessantes dessa representação.



O primeiro é que não sei até que ponto isso não reforça os estigmas raciais. Da representação de negros e pardos como grupos frágeis e doentes. Essa é uma questão belicosa, por que obviamente a realidade mostra que uma fração importante dos portadores é dessas raças, e um cientista deve obrigatoriamente fazer um retrato dos fatos o mais verdadeiro possível. O outro lado da questão, extremamente espinhoso no nosso país, é como essas representações alteram os nossos quadros de prioridades. Ao retratar essas doenças como predominantes nos estratos sociais mais defavorecidos, ou como predominantes em raças que não tem representatividade política, é possível que isso faça com que esses agravos passem a ter menos prioridade nos grupos que têm poder de decisão, econômico e político. São as famosas doenças dos pretos de tão pobres, ou pobres de tão pretos, que têm soluções cantadas e decantadas há decadas pelos especialistas, mas que parecem insolúveis para o Estado brasileiro. Isso que vou escrever é de uma maldade horrorosa, mas às vezes acho que teríamos uma repercussão e uma ênfase maior se focássemos nos aspectos veterinários da coisa, pois afinal ninguém quer ter o seu cachorrinho cardiopático ou com uma doença de pele desfigurante.



Assim sendo, temos aqui um dilema - representar ou não representar? Representar até que ponto? Uma resposta divertida para esse problema foi-me dada uma vez pelo queridíssimo amigo inglês Prof. Rod Dillon da Universidade de Lancaster. Ele usa fotos de celebridades doentes para ilustrar os casos. Na Inglaterra de vez em quando há um ou outro ator famoso que fica doente em alguma viagem pelos trópicos. Assim, evita-se o estigma e sensibiliza-se a platéia - espero que não a ponto de evitar viagens para a América do Sul. Copiando a idéia, eu utilizo fotos de pessoas famosas para mencionar os casos de Dengue e Chagas (obviamente não os seus aspectos clínicos, afinal eu trabalho com os insetos), mas Leishmaniose é uma pedra no sapato. Se algum leitor caridoso conhecer alguém famoso que tenha tido essa doença agradeço pela dica nos comentários.



Seja como for, além das questões raciais, uma coisa que sempre me impressionou mundo afora (e acredito que outros colegas compartilhem dessa impressão) é a diversidade dos grupos de pesquisa em outros países, especialmente nos que são líderes em ciência. Na Inglaterra, que é onde eu passei a maior parte dos meus tempos de estágios no exterior, trabalhei com paquistaneses, sauditas, quenianos, sulafricanos, russos, mexicanos, galeses, escoceses, franceses, alemães, canadenses, americanos, chineses, indianos, venezuelanos, colombianos...e até brasileiros. Isso é o que eu me lembro rapidamente. É evidente que a excelência científica caminha junto com a diversidade, a partir do momento em que se decide buscar os melhores independentemente de sua origem nacional, étnica ou cultural. No Brasil há uma série de impedimentos para que se tenha esse efeito tão benéfico, e realmente é difícil encontrar estrangeiros nos nossos departamentos científicos. 



Mas fica aqui uma provocação. Se não conseguimos nem lidar com, ou nos beneficiar da nossa diversidade interna, como podemos querer nos aproveitar da diversidade do mundo? Para mim está muito claro que, além do fato inquestionável de que a ciência tem e terá um papel preponderante no futuro do país, não tenho dúvidas de que a ciência também terá um papel relevante no futuro das questões de raça no país. E vice versa. Através da resolução e do enfrentamento das questões raciais no meio acadêmico, teremos uma ciência melhor e mais forte, que finalmente poderá adotar o protagonismo que merece e que todos necessitamos para as questões do país como um todo.



Enfim, espero que eu tenha levantado algumas questões boas para debate. Resta agora decidirmos de forma mais ampla sobre o que fazer, e tomar providências efetivas. Isso envolve cotas raciais, critérios de seleção, políticas de diálogo, em níveis de formação que são muitas vezes bastante restritivos. Eu tenho um grande constrangimento na escrita desse texto, pela minha perspectiva de homem branco com boa condição econômica. De qualquer forma, peço desculpas se ofendi qualquer interlocutor por termos ou idéias que necessitem aprofundamento. E agradeço se pudermos continuar a discussão nos comentários e em textos futuros.

  


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