Um ansiolítico para os jovens cientistas




Um dos eventos que me marcou em 2019 foi, acreditem, uma banca de qualificação. Bancas são eventos absolutamente frequentes na vida acadêmica, e embora em alguns casos tenham a marca de um rito de passagem importante, é impossível não se acostumar. No caso das bancas de qualificação, não há nem a mesma cerimônia, e é preciso tomar cuidado para que as bancas não virem mera burocracia institucional.


As alunas avaliadas, do programa de Pós-graduação em Biologia Celular e Molecular, eram EXCELENTES. A primeira, Thais Lemos, aluna da excepcional Dra. Yara Traub-Cseko, desenvolveu linhagens transgênicas de Leishmania, para entender o papel que certos genes do parasito poderiam ter na interação com o flebotomíneo. Também fez levantamentos sobre candidatos vacinais. A segunda aluna, Carolina Boucinhas, aluna da querida Dra. Claudia Levy, estudou a dinâmica da infecção de um parasito de vida livre (Crithidia fasciculata) em camundongos, assim como o efeito da coinfecção com Leishmania. Os dois trabalhos eram interessantíssimos, as alunas articuladas, os orientadores presentes. Contudo, fiz uma arguição extremamente crítica das duas apresentações e dos relatórios. Acho que estava especialmente rabugento naquele dia, mas havia uma razão para meu excesso de preocupação. É preocupante ver alunos que começam projetos, disparam novas idéias, mas não as finalizam ou lhe dão o acabamento técnico adequado, antes de partirem para a próxima pergunta.


Essa é uma conversa que tenho frequentemente com os meus alunos, e fiquei um pouco irritado ao ver isso acontecendo com os alunos dos outros. Eu, pessoalmente, tive uma experiência absolutamente infeliz nesse sentido, e por causa de minha ansiedade tive um atraso de muitos anos na minha primeira publicação. O caso é conhecido, público e notório entre meus amigos mais próximos: no meu mestrado, eu me dediquei a purificar enzimas celulolíticas da barata doméstica, Periplaneta americana. O problema é que as baratas têm um monte dessas enzimas, e eu queria purificar TODAS. Dessa forma, passei os dois longos anos do meu mestrado purificando uma enzima atrás da outra, e no final...não tinha praticamente nenhum dado sobre nenhuma delas. A dinâmica era a de uma criança que vai encontrando brinquedos novos no caminho, ou no balcão de uma grande loja: conforme eu purificava uma das enzimas, aparecia uma nova, e eu não resistia ao convite para iniciar mais um ciclo de diversão no cromatógrafo. É um momento para agradecer a paciência infinita da minha orientadora, a Profa. Clélia Ferreira do IQ-USP. Outro orientador já teria me mandado às favas - foram 14 enzimas purificadas durante o mestrado, e no final eu só consegui fazer um pH ótimo preliminar de algumas delas.

Uma coisa que explica um pouco essa dinâmica, de começar sem terminar, é a óbvia preferência que os seres humanos têm pela novidade. Além disso, cientistas são curiosos por natureza e por profissão, mas, além disso, existe sempre a pressão e a ilusão de que estamos a um passo de fazer uma GRANDE descoberta. Aí vale a pena fazer um pequeno comentário: as GRANDES PERGUNTAS em geral devem ser feitas ANTES do trabalho, na fase de projeto, e não DURANTE sua realização. A não ser que um dado absolutamente inesperado apareça no meio do caminho, o que é raro...


O conselho que geralmente dou aos alunos é que contenham a sua ansiedade e mantenham o foco na pesquisa que estão fazendo até finalizar o trabalho, e responder decisivamente uma pergunta de cada vez. FOCO era uma palavra muito usada pelo Dr. Eloi Garcia da Fiocruz, com quem tive o enorme privilégio de dividir sala por muitos anos. Na verdade, os alunos que iniciam a carreira científica muitas vezes estão iludidos com a imagem do cientista extremamente criativo, brilhante, multifacetado, à la Leonardo da Vinci, Einstein ou quem quer que seja. O que desaparece nessa idealização do cientista é que o trabalho científico mudou enormemente nos últimos cem anos, e hoje ele é muito mais profissional, rotineiro e formalizado do que na época dos gênios renascentistas. Os cientistas hoje, por exemplo, tem escritório, ganham salário, têm hora, data e local para realizar seus experimentos...


Outros aspecto correlato para o qual é necessário chamar a atenção dos jovens é a altíssima competitividade do mundo acadêmico. Dessa forma, embora muito provavelmente cada um de nossos alunos seja a pessoa mais inteligente da família, ou o aluno mais brilhante da classe, vai competir por um lugar ao sol na academia com outros que são igualmente brilhantes. Ou seja, o que nos ajuda a nos destacar e individualizar como cientistas não nos diferencia muito ao longo da carreira. Muitas vezes o que acaba fazendo a diferença é a força de vontade e disciplina, que são justamente aquelas características pouco idealizadas nos filmes e biografias. E, no caso de um desses alunos conseguir uma posição na academia, vai se deparar com uma rotina de trabalho absolutamente...repetitiva. O desafio, nesse caso, é não perder o interesse mesmo se acostumando com um dia a dia muitas vezes bastante monótono. Geralmente isso é superado pelo amor à profissão.


Isso não quer dizer que não tenhamos que ser brilhantes, intuitivos, geniais. Mas nos dias de hoje não adianta muita coisa ser apenas isso, mesmo propondo respostas brilhantes, se o resultado final não é entregue para a sociedade, seja na forma de tese, artigo ou produto. O produtivismo científico tem muitos males, mas é uma realidade que, se ignorada, pode prejudicar a carreira incipiente de nossos tão queridos e preciosos alunos. Enfim, espero que as duas alunas e suas orientadoras já tenham me perdoado pelos comentários naquele dia - como também espero que tenham se dedicado mais a finalizar o primeiro artigo da tese...



  

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