O PAU NA MESA
Está na hora da
comunidade acadêmica botar o pau na mesa. Desculpem a crueza das palavras, mas
o futuro do país está em risco. Não se trata apenas da inundação de declarações
impróprias e besteirol institucional que ocupa a mídia e nossas mentes
ininterruptamente. Isso é apenas estratégia de apropriação do tempo, do
discurso, demonstração de poder. Quem perde tempo desmentindo tem menos poder
que quem ocupa os holofotes colocando merda no ventilador. Uma das obrigações
morais de todo cientista é a denúncia da burrice, e é em parte por isso que eu
sou tão pouco popular nas festinhas das amigas de escola das minhas filhas. E
cientistas são em geral tão pouco populares na mídia e na sociedade em geral
(embora alguns de nós, eu incluído, sejamos mesmo fundamentalmente chatos). Faz
parte do pacote.
É claro que o besteirol é uma
preocupação, mas menos grave do que o que está acontecendo com a agenda
política e econômica do país. O governo está mais uma vez contingenciando
recursos da ciência e tecnologia. Os laboratórios de pesquisa do país estão
simplesmente morrendo. E não há pesquisa relevante no meio privado brasileiro.
Não há financiamento relevante de pesquisa básica por parte do setor privado em
nenhum país do mundo. O Brasil não é exceção. E por que é
tão importante, afinal, o financiamento da pesquisa básica?
E é aqui que a
academia precisa bater o pau na mesa. Colocar as coisas em seus devidos
lugares. Reestabelecer a hierarquia das coisas, e deixar claro que políticos, economistas,
empresários apenas existem, no sentido mais básico de todos, por causa do
trabalho científico.
Comecemos pela
economia brasileira, esse setor tão pouco diversificado e de compadrio com o estado, e que
pode ser dividido em três ou quatro setores majoritários. O mais importante é o
do agronegócio. Aqui, precisamos deixar claro: A ciência brasileira CRIOU o agronegócio. Não há um único cultivar
ou criação animal que não seja fruto de técnicas avançadas de melhoramento ou
de cultivo. Sem ciência, não conseguiríamos plantar um único pé de milho.
Já que estamos falando
de plantas e afins, vale destacar que a maioria absoluta dos brasileiros
consome cerveja transgênica, e alimentos processados transgênicos, todos os
dias há anos. Então precisamos parar com esse debate anacrônico a respeito
dessa tecnologia de melhoramento vegetal e de seu impacto na saúde. O problema
são os agrotóxicos embutidos, mas esse é outro longo debate. Eu me recuso a
usar o termo produto fitossanitário, pois ele embute a burrice secular de achar
que patógenos são sujeiras. Críticas nos comentários, por favor.
Pensemos então no
setor extrativista. A ciência brasileira
CRIOU o setor extrativista, através da prospecção de recursos e
desenvolvimento técnico e de pessoal qualificado. Um desenvolvimento que é
particularmente visível é o do setor petrolífero, no qual o Brasil, através de
seu conhecimento técnico único, desenvolvido em conjunto com as universidades,
se tornou pioneiro na exploração de petróleo em mares extremamente profundos, o
vulgo pré-sal.
O poder e a capacidade
de invenção da ciência brasileira é tal que o nosso cotidiano é completamente
definido pelo avanço científico. A ciência
brasileira CRIOU a matriz energética nacional, seja pelo pioneirismo na
energia hidrelétrica, seja pelo desenvolvimento completamente à frente do seu
tempo de biocombustíveis como o etanol, seja pela proposição e implementação de fontes
alternativas, como a nuclear, a solar e a eólica. A maioria dos cidadãos não
percebem isso, mas ninguém conseguiria ligar uma lâmpada, ou beber um copo de
água, se não fosse o investimento na ciência e tecnologia nacionais.
Até o AR que respiramos é um produto
tecnológico. Embora as consequências
climáticas da mudança causada na atmosfera pela tecnologia humana não sejam as desejadas,
é inegável que a composição do ar foi alterada em escala global pelo ser humano.
Em outra perspectiva, se não fosse a percepção e a tecnologia de monitoramento
da qualidade do ar, nas grandes cidades a maioria das pessoas estaria destinada
a ter doenças respiratórias graves e agudas. O ar seria irrespirável.
Continuando, a ciência brasileira CRIOU o setor de
serviços E o setor bancário. Os dois são completamente dependentes de
tecnologia da informação, com suas revoluções tecnológicas cada vez mais
frequentes. Sem o investimento em ciência e tecnologia, não haveria pessoal
qualificado nem para comprar a tecnologia desenvolvida no exterior. A própria
base do setor financeiro consiste em matemática avançada, e esse tipo de
conhecimento é desenvolvido e cultivado na academia. De onde o público acha que
saem as ciências das projeções, análises de risco, cálculo de investimentos?
Um dos setores mais
sensíveis e caros ao público é o da saúde. A
maioria dos brasileiros não estaria viva se não fosse a ciência nacional. O
Brasil, graças ao esforço de sua comunidade médica e da saúde, conseguiu enfrentar
(embora infelizmente não tenha vencido em definitivo ainda) doenças e agravos
históricos, especialmente através de políticas de prevenção e vacinação. Não é
por acaso que o perfil etário da população mudou, e que agora o país enfrente
novas prioridades no campo da saúde, com doenças claramente associadas ao
envelhecimento, como doenças degenerativas e câncer. Se o país para o
investimento nos estudos na área da saúde, é possível que uma boa parte da população
morra, e nós não vamos nem saber do quê. Vale dizer que a expectativa de vida
média no começo do século XX era de 33 anos. Ou seja, qualquer pessoa com mais
de 33 anos é extremamente sortuda ou deve agradecer à ciência nacional.
Dessa forma, é
absolutamente ridículo e desanimador ver um governo que corta os recursos da
ciência. Qualquer aluno de primeiro semestre de qualquer faculdade de economia
sabe que o crescimento futuro de um país está relacionado à sua capacidade de
investimento, especialmente o tecnológico. Não existe nenhuma economia desenvolvida
no mundo que não invista recursos maciços em tecnologia. E qualquer pessoa sabe
que o desenvolvimento científico não surge da noite para o dia, é uma caminhada contínua e muitas vezes tortuosa. Da mesma forma, a história do Brasil também
mostra que justamente os gestores que capitanearam grande mudanças tecnológicas
no país foram responsáveis por bem-estar social e estão para sempre na memória
política de boa parte da população. Podemos citar Getúlio e a indústria
metalúrgica, JK e a indústria automobilística, os governos militares e o
etanol, FH e o mercado de telecomunicações, Lula e o pré-sal, entre outros exemplos.
Os discursos e poses,
acordos e manchetes são absolutamente vazios se, ao mesmo tempo, o governo
contingencia metade do orçamento do ministério dedicado à pesquisa científica. Isso
coloca em risco real não apenas o desenvolvimento do país, mas o bem-estar e a
vida de todos os brasileiros. É preciso denunciar a burrice dessa estratégia, e
um governo que é chamado de burro pela comunidade científica não tem mais nada
a fazer senão agradecer e ouvir. Não há setor da sociedade mais isento e capaz
de fazer o país crescer do que a comunidade acadêmica nacional. Justamente por
isso esse clamor deve chegar aos gestores da sociedade, em todos os níveis. Não
há estratégia de sobrevivência política a longo prazo mais sólida do que ouvir
a academia, e investir em conhecimento. É o que todos os países desenvolvidos fizeram ao longo da história moderna. Por inúmeras razões, os diferentes
atores do nosso espectro político precisam ser lembrados dessa eterna verdade.
Mãos à obra, senhores!
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