O cheiro do barbeiro - e um novo repelente para o combate da Doença de Chagas!
Na segunda feira passada tive o prazer imenso
de participar da banca de avaliação de doutoramento de um aluno exemplar, o
agora doutor Thiago Andrade Franco, orientado pela queridíssima Professora Dra.
Ana Cláudia do Amaral Melo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A apresentação
foi exemplar, a discussão riquíssima, o trabalho desenvolvido primoroso e
altamente relevante.
Em resumo, o Dr. Franco estudou receptores
olfativos no barbeiro Rhodnius prolixus,
transmissor do parasito causador da Doença de Chagas (Trypanosoma cruzi). Embora boa parte do público leigo nunca tenha
pensado a respeito, insetos como mosquitos, baratas e borboletas sentem uma
grande gama de cheiros, muitas vezes com uma sensibilidade muito maior que a
nossa. Um exemplo de cheiro, chamado de odor pelos especialistas, de especial
importância econômica no controle de pragas e vetores são os feromônios, também
conhecidos como hormônios sexuais. A descoberta de um hormônio sexual abre
perspectivas fantásticas no controle de um determinado inseto, por que esses
hormônios são extremamente específicos, podendo ser usados para armadilhas
atrativas com baixíssimo impacto ambiental.
O grupo da UFRJ fez uma busca inicial e uma
análise dos receptores olfativos presentes no genoma do barbeiro, classificando
esses receptores de acordo com a sua estrutura. Vale a pena destacar novamente
a importancia do projeto genoma do barbeiro, que teve a coordenação e liderança
do Prof. Pedro Lagerblad Oliveira da UFRJ, e uma grande participação de
cientistas brasileiros. Um fato importante é que em insetos, cada receptor
olfativo tem uma estrutura única, reconhecendo apenas certos tipos de odores. Classificando
os receptores pela estrutura, e comparando com os receptores já conhecidos em
outros insetos, foi possível selecionar candidatos ao receptor do hormônio
sexual. Esses receptores foram testados e, para grande frustração do grupo, não
reconheceram as moléculas atrativas da espécie. Caso tivessem tido sucesso,
poderiam testar moléculas mais baratas com potencial atrativo, e desenvolver
assim a armadilha perfeita para os barbeiros dessa espécie.
Contudo, mesmo tendo esse insucesso, o grupo
deu continuidade ao estudo, pois afinal havia uma tese de doutorado a defender,
não é mesmo? E, tendo um receptor para estudar, decidiram descobrir a que tipo
de molécula (ou odor) o receptor escolhido respondia. Foram testados inúmeros
compostos, até que se descobriram quatro compostos que o receptor reconhecia.
Tendo descoberto essas moléculas, restava a pergunta: o que esses compostos
provocavam no inseto? Qual seria a importância fisiológica desse
reconhecimento? E, para grande surpresa de todos, os insetos mostraram uma
resposta fortíssima de repelência a um dos compostos testados. Em outras
palavras, cheiro ruim.
Aqui vale a pena fazer um parênteses. Embora
compostos repelentes sejam uma arma poderosa na prevenção de picadas de
insetos, a descoberta de repelentes é dificilíssima, pois para fazer o teste é
necessário um experimento comportamental com os insetos vivos. Ou seja, não dá
para fazer experimentos em larga escala, testando milhares de compostos
diferentes até encontrar o certo. Eu diria que a descoberta de compostos
repelentes de insetos é um dos calcanhares de Aquiles da pesquisa entomológica,
e o maior indicativo disso é o número minúsculo de bons repelentes conhecidos,
que não chega a nem a cinco! Cuidado para não confundir a natureza química dos
compostos (DEET, icaridina, etc) com as marcas comerciais, que existem às
dezenas. Na verdade, o repelente mais usado, o DEET, é a base da maioria dos
produtos e foi descoberto há quase 70 anos!
Outro fato importante é que os repelentes
comerciais à base de DEET são bons para mosquitos, mas sua eficiência varia de
acordo com a espécie – mosquito da dengue, malária ou pernilongo são repelidos
com diferentes intensidades e, lamentavelmente, não têm efeito sobre barbeiros.
Dessa forma, a descoberta do grupo da UFRJ têm uma importância ENORME para um
país endêmico em Doença de Chagas. A nova molécula pode ser a base de produtos
que, além de proteger a população do vetor, podem ter um impacto econômico
enorme, não só no sentido de menos gastos com pessoas doentes, mas no
desenvolvimento de novos produtos e de uma nova indústria de produtos!
Vida que segue, fiz meus comentários, focando
na importância econômica, e nos possíveis significados ecológicos e
fisiológicos dessas descobertas. Inicialmente seria importante levantar aspectos
quanto ao custo de produção dessas moléculas em larga escala, além de sua
aplicação farmacológica. É importante saber se elas são tóxicas para seres humanos
ou outros vertebrados, especialmente se formos pensar em seu uso veterinário. Não
há inquéritos abrangentes a respeito, mas há indicações bastante fortes de que
a incidência de Doença de Chagas nos cães de boa parte do país é altíssima,
especialmente por que cães adoram comer os insetos! Do ponto de vista de
desenvolvimento de produto, sempre é mais fácil começar com uma aplicação veterinária,
por que os aspectos legais e regulatórios são menos complicados...
Outro ponto que discuti extensivamente é o
significado dessa repelência na natureza. É óbvio que os insetos não evoluíram e
desenvolveram esse receptor olfativo com o fim exclusivo de gerar um resultado
de laboratório! Acredito que se o grupo da UFRJ se debruçar sobre a ocorrência dessas
moléculas em outros seres vivos, como fungos e plantas, pode descobrir coisas
interessantíssimas do ponto de vista biológico. Finalizei minha discussão perguntando
por que esse trabalho não estava na capa dos jornais. Uma descoberta fantástica
dessas deveria ser destaque em todos os meios de comunicação! Os laboratórios
de pesquisa precisam divulgar mais os seus trabalhos, especialmente em uma
época na qual a ciência brasileira anda tão desprestigiada...
Os outros membros da banca fizeram comentários
especialmente interessantes. A Dra. Rafaela Vieira Bruno, querida colega do
IOC, discutiu mais aspectos técnicos dos experimentos, como os tipos de análises
que foram realizados e os controles que seriam mais (ou menos adequados). A querida
Profa. Isabela Ramos, da UFRJ, também discutiu aspectos técnicos, e fez
comentários muito interessantes sobre a apresentação dos resultados. Um ponto
que chamou minha atenção é o alerta que ela fez de que os alunos às vezes
retomam muitos pontos da introdução, métodos e resultados na discussão da tese,
o que acaba ficando repetitivo. Eu pessoalmente não tenho muita coisa contra
repetição, mas em um ponto ela está certa: ao fazer isso, o aluno perde a
oportunidade de ousar, colocar novas idéias, desenvolver hipóteses. E há poucos
momentos na carreira acadêmica onde se tem mais liberdade de que ao escrever a
dissertação de uma tese de doutorado....
Terminamos a discussão do trabalho com a
sensação alegre de missão cumprida, de realização e participação de um momento
bonito e promissor da ciência brasileira. Parabéns e muito obrigado ao Dr.
Thiago, e aos Profs. Ana Melo, Mônica Moreira e Walter Leal, que nos brindaram
com ciência de tão alto nível!
O trabalho do grupo já foi aceito para
publicação. Coloco a seguir links para alguns artigos originais do grupo. Em breve a tese do
aluno deve estar disponível no portal CAPES. Espero que tenham gostado tanto quanto eu. Um grande
abraço a todos e até a próxima!
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