O SISGEN


Essa semana, mais exatamente hoje, finalizei o meu cadastro no SISGEN. O público leigo provavelmente não tem a menor idéia do que se trata, mas poucas coisas suscitaram tanta discussão no meio acadêmico nos últimos anos quanto o SISGEN, especificamente nas áreas das ciências da vida. O SISGEN é o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado. Não sei o quanto a minha explicação está formalmente correta, mas até onde entendi o SISGEN é uma base de dados aonde o governo pode controlar o uso de organismos brasileiros para pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico.
Assim sendo, o preenchimento do SISGEN ficou a cargo de cada pesquisador. O site em si não é muito complicado, mas a priori nenhum pesquisador tem a formação adequada ou mesmo a prerrogativa para entender mais uma nova legislação. Ainda mais quando o discurso que se ouve menciona punições, sanções e proibições ameaçadoras, sobre usos e processos nos quais nem os termos e definições estão muitos claros para todos. Eu pessoalmente não posso reclamar da ausência de assistência e material para me auxiliar, pois nesse sentido a Fiocruz foi absolutamente exemplar. Tivemos seminários, recebemos guias explicativos, tivemos assessoria extremamente competente.
Em linhas gerais, os pesquisadores brasileiros devem cadastrar seus projetos de pesquisa em mais uma base de dados do governo, explicando os objetivos, quais organismos estão sendo utilizados na pesquisa, quem está fazendo a pesquisa e quais são os seus resultados. Parece uma coisa simples, mas na prática ela pode ser extremamente complexa. Por exemplo, há pesquisas que usam centenas ou milhares de organismos. Há pesquisas que contam com redes de colaboradores de dezenas ou mesmo centenas de cientistas no mundo inteiro. Há pesquisas com organismos desconhecidos. Há pesquisas com informações genéticas que são virtuais, ou seja, estão apenas no computador.
Eu entendo que ter um controle sobre o que se faz com a fauna e flora brasileiras é importante. Assim, o SISGEN pode ter diferentes tipos de utilidade, tanto para que se tenha uma visão global da pesquisa atual quanto para que se tenha um filtro sobre o que se pode e o que não se pode fazer. Há muita discussão sobre a obtenção de vantagens econômicas a partir da biodiversidade e como fazer para que isso reverta a favor das comunidades que a preservam, exploram e a descobrem a partir de suas culturas tradicionais. Mas como a base de acessos pode servir de controle? Quem vai fiscalizar a própria informação que cada um coloca? E pesquisadores estrangeiros, que a princípio não parecem passíveis de nenhuma punição real? Quem vai autorizar o acesso ou a pesquisa com os seres vivos no país? Eu vou precisar de autorização para continuar estudando as moscas e mosquitos que sempre estudei? O governo tem a prerrogativa de me proibir, seja qual for a razão? Coibir a biopirataria e o uso indevido dos recursos naturais sem tolher a liberdade dos pesquisadores sempre será um desafio. De qualquer forma, é melhor que se tenha algum controle do que nenhum.
O processo em si, por menos trabalhoso que seja, significa na prática mais uma burocracia, mais um trabalho para o pesquisador. Na verdade, a lógica dos serviços, tanto públicos como privados, tem sido nos últimos anos a do uso da tecnologia para baratear custos e simplificar as ações, mas muitas vezes ao custo do tempo e do trabalho dos próprios usuários. O tempo do cidadão parece sempre barato. Somos nós que preenchemos nossos cadastros, somos nós que escaneamos nossos documentos, somos nós que fazemos nossas declarações. E muitas vezes sem acompanhamento ou auxílio nenhum, no máximo um tutorial ou guia na internet que muitas vezes é difícil de decifrar.
Eu não sei dizer se a quantidade de burocracia que enfrentamos é excessiva ou pequena, se comparada a padrões internacionais. Pelos contatos que tenho nos Estados Unidos e Reino Unido, percebo que a quantidade de formulários que os colegas de outros países têm que preencher para pedir recursos às agências de fomento, ou mesmo uma licença para procedimentos com animais ou outros seres humanos é enorme, e muitas vezes bastante superior à nossa. Contudo, sem dúvida nas últimas décadas a quantidade de formulários que um pesquisador brasileiro tem que preencher, para qualquer uma de suas tarefas de rotina, aumentou exponencialmente. Isso é especialmente verdade nas plataformas virtuais, aonde cada item a preencher é uma caixinha de texto num site, e muitas vezes as caixinhas abrem novas caixinhas que abrem novas caixinhas. Eu às vezes tenho a impressão de que há pessoas que se especializam em fazer formulários, e que fazer formulários é uma atividade, uma arte, uma ciência que se completa em si mesma.
Um grande problema que me assola nesses preenchimentos é a sensação, ou a memória afetiva, de estar fazendo algo vazio, sem sentido, sem aplicação ou sem nenhum uso futuro. É fato conhecido que na sociedade brasileira existe a cultura do formalismo burocrático, aquela crença tacitamente assumida de que os problemas se resolvem apenas ao colocá-los no papel. Talvez, pela experiência histórica de documentos, registros, protocolos que não resultam em mudanças ou ações reais, eu esteja calejado, ou traumatizado. Gato escaldado tem medo de água fria, certo?
Contudo, há exemplos históricos de sistemas que seguiram essa lógica mas que reverteram em benefício para a comunidade. Um bom exemplo, conhecido por toda a comunidade acadêmica, é a Plataforma Lattes, aonde os acadêmicos preenchem e catalogam seus currículos e sua produção. Além de servir como um modelo de curriculum vitae online que o pesquisador pode salvar, atualizar, e imprimir, também é utilizado pelas agências de fomento para análise de mérito. Eu me lembro que a primeira vez que preenchi o currículo Lattes tive a mesma ojeriza que senti com o SISGEN, algo como ¨mais uma tarefa inútil, que inferno¨, e hoje, a primeira coisa que pergunto ao aluno que quer entrar no laboratório é ¨você têm currículo Lattes?¨

Enfim, torço para que o SISGEN se revele uma ferramenta útil com o passar dos anos. Para que isso aconteça são necessários outros elementos de uma política de C&T robusta e a longo prazo, o que realmente seria fantástico para o país. Espero que os colegas tenham superado bem esse obstáculo e que tenhamos frutos no futuro para dividir com a comunidade. Um grande abraço a todos! 

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