Flebotomíneos e o mistério da vida

 Há algumas semanas um trabalho de uma das minhas orientandas foi aceito em uma revista científica internacional. Não é um trabalho qualquer: é o primeiro trabalho que coordeno publicado por uma aluna de doutorado oficialmente orientada por mim. Além disso, é o primeiro trabalho que coordeno que tem como objeto de estudo o que talvez venha a ser no futuro o meu principal modelo de investigação, os flebotomíneos. 

Flebotomíneos são dípteros. Isso que dizer que eles são insetos do grupo das moscas e mosquitos, embora eles não se encaixem exatamente em nenhum desses dois grupos. Acontece que não estou muito familiarizado com o uso de nomes populares brasileiros para insetos. Olhando a literatura, vejo que o nome para esses insetos é birigui, mosquito palha, corcundinha. Mas isso não me diz muita coisa. No laboratório chamamos eles de mosquinhas, ou moscas apenas.

Esses insetos são considerados importantes por que transmitem uma doença chamada Leishmaniose. Há milhões de pessoas infectadas mundo afora, muitas no Brasil. Na verdade, Leishmaniose é um nome de um conjunto de doenças, causadas por um parasita chamado Leishmania. Há diferentes formas da doença, como Leishmaniose Visceral, Cutânea ou Muco-cutânea. Há tratamento, mas ele tem efeitos colaterais e não elimina completamente o parasita. Não há outra forma disponível de controle da doença além de diminuir a população dos insetos, o que não é uma estratégia que se mostrou efetiva até o momento.

Dessa forma, pode-se dizer que o objetivo maior da nossa pesquisa é desenvolver, ou ajudar a desenvolver, novos inseticidas, para matar mosquinhas transmissoras de doenças. Nosso papel nessa busca é estudar a digestão dessas moscas. Há uma razão fundamental para isso: conhecendo melhor a fisiologia desses insetos, podemos desenvolver novas estratégias. E, por mais surpreendente que isso possa parecer, o que não faltam são aspectos desconhecidos sobre a biologia de flebotomíneos.

Embora saiba-se que as moscas fêmeas se alimentam de sangue, e que tanto machos como fêmeas se alimentem de néctar (o que não é de conhecimento geral...), sabe-se muito pouco sobre o hábitat e a dieta das larvas desses insetos. Em laboratório eles são criados com uma mistura de fezes de coelho, terra e ração de coelho, que é deixada apodrecer por duas semanas e depois esterilizada. Há alguns relatos do isolamento e observação de larvas no solo, especialmente na Amazônia, mas são muito poucas observações para que se possa generalizar isso para todas as regiões do país. Além disso, os levantamentos não nos informam sobre o que os insetos andaram comendo...

Mas de qualquer forma é senso comum entre os pesquisadores que essas larvas devem ser detritívoras na natureza. O que me leva ao segundo ponto importante da pesquisa, que é a maravilha da existência, na natureza, de animais que são capazes de se alimentarem de praticamente qualquer coisa, e se desenvolver e manter saudáveis com isso. Apesar de ser um fato comum, corriqueiro, talvez óbvio, ao ser olhado de perto isso não deixa de ser uma grandiosidade: como é que esses bichos conseguem comer coisas podres o tempo todo, e não têm infecções intestinais? Como eles conseguem se alimentar quase que de terra, e mesmo assim conseguir nutrientes? Essas perguntas são a base de investigações que, além de desvendar novos moléculas que esses insetos usam para combater infecções intestinais, estão esclarecendo um pouco das relações evolutivas entre o sistema digestivo e o sistema imunológico.

Nessa encruzilhada entre ciência básica e aplicada, é difícil saber ao certo o que vamos encontrar no final. A única certeza que tenho é que a procura está valendo muito a pena. Pelo menos em termos de novas perguntas, novos questionamentos. Quem diria que nessas mosquinhas iríamos encontrar tanto mistério?


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