A Economia e a Ciência



Acredito que uma boa parte da comunidade científica, para não falar da sociedade como um todo, está perplexa e ressentida com um fato acachapante: o Brasil é um país que investe cada vez menos em ciência e na geração de conhecimento. Aqui precisamos destacar dois diferentes tipos de valor e de investimento: o tangível, que pode ser quantificado em termos de recursos financeiros, e o intangível, difícil de mensurar, que pode ser medido em termos de poder e de prestígio. Não há dúvidas de que vamos mal no primeiro critério e, em relação ao segundo, a certeza é avassaladora: num momento em que a única resposta razoável e eficiente para todas as crises do país, econômicas, sociais e sanitárias, seria abraçar e aplicar o conhecimento científico, observamos uma elite política e econômica que caminha na direção contrária, do curandeirismo, do simplismo, do misticismo. Os resultados estão aí, à frente de todos. Não é preciso detalhar o nível do nosso desgraçamento, resultante dessas escolhas.

Um pensamento que vem amadurecendo na minha mente, há algum tempo, é que a percepção e o enfoque do debate, por parte dos interessados, talvez precise de uma mudança de perspectiva. A pergunta que não quer calar, que parece ser o Santo Graal dos comunicadores e dos cientistas, é como sensibilizar eficientemente as nossas classes dirigentes, e a sociedade como um todo, para a importância do investimento em ciência. E eu vejo, muitas vezes, não só o argumento romântico, de defesa do valor intrínseco do conhecimento, mas também, numa perspectiva econômica, linhas de raciocínio que a meu ver também pecam pela pouca materialidade, o que faz com que toda e qualquer argumentação perca peso e acabe escanteada para o campo das idéias bonitas, mas sem prioridade.

Em relação ao primeiro problema, temos aqui uma falha clamorosa na educação de forma geral, resultando em uma sociedade que tem pouco conhecimento de como funciona a ciência como um todo. O debate é riquíssimo, e há gente de alto quilate empenhada nisso. O que eu quero abordar aqui, entretanto, é o segundo tipo de discussão, que a meu ver ganharia com uma mudança aguda de perspectiva.

Eu me refiro àquela linha de pensamento, tão cantada e decantada pelos cientistas e comunicadores, de que sem ciência não há economia. De que o conhecimento científico é a base do progresso, e de que sem ele não teríamos agronegócio, indústria, serviços, saúde. Esse é o argumento majoritário quando se leva a discussão para o campo econômico. Tenta-se convencer de que a pesquisa é um bom investimento, embora nesse sentido os dados brasileiros fiquem muito atrás dos levantamentos profissionais feitos em outros países. Por exemplo, hoje sabemos que para cada dólar investido no projeto genoma humano a sociedade norte-americana recebeu 141 dólares de volta. Há pouquíssimas pessoas no Brasil que saibam fazer esse tipo de conta para as nossas pesquisas.

Eu acredito que esse argumento é pouco eficiente por duas razões. A primeira, e mais importante, é que ela reforça o papel preditivo e preventivo da ciência, no sentido de que ela resolve e antecipa demandas futuras da sociedade e da população. E aqui nós caímos numa armadilha, já que vivemos em um país de políticas historicamente imediatistas, e em uma era de satisfação instantânea. Raramente o governo e a sociedade estão preocupados com o futuro, geralmente estão preocupados com o AGORA. Um sintoma evidente disso é o descaso em que nos encontramos nas áreas da saúde e na área ambiental , temas nos quais não adianta fazer políticas de remediação sem ações preventivas e de vigilância. 

Dessa forma, o argumento de que se investirmos em ciência teremos ganhos muito grandes para a sociedade daqui a 5, 10, 20, 50 anos perde completamente o sentido e o apelo. Por melhor que seja, atinge ouvidos moucos. A segunda razão que empobrece o argumento é que ele desmaterializa o investimento em ciência. A ciência passa a ser algo benéfico, no qual se investirmos talvez tenhamos resultados lá na frente, mas sem discutir muito os detalhes do cenário atual. E os problemas presentes que a ciência está resolvendo todos os dias.

Há uma linha dos debates que foca um pouco nisso, mas acredito que talvez ela esteja muito voltada para o cidadão comum, para os problemas do dia a dia. Eu acredito que ganharíamos muito se trouxéssemos esse racional para a discussão macroeconômica. Por exemplo, por causa desse caráter abstrato da discussão, eu vejo poucas pessoas considerando a Ciência como um SETOR DA ECONOMIA. E não haveria por que ter dúvidas a respeito. A ciência, seja ela pública ou privada, gera empregos diretos e indiretos, comercializa insumos, utiliza matéria prima, vende produtos, realiza operações de comércio nacional e internacional. Há poucos setores na economia que sejam tão capilarizados e geradores de valor econômico. Isso é claramente perceptível em qualquer empresa ou grupo de pesquisa que se visite.

Mas vejamos os números. Eles são públicos e de fácil acesso, não há nenhuma novidade neles, mas acredito que nos beneficiaríamos bastante se revisitarmos eles com outro enfoque. Por exemplo, vejam os investimentos em ciência dos dez países que lideram o mundo nesse quesito:

País
Investimento total (US$, Bilhões)
% PIB
Investimento per capita (US$)
Ano
China
553.4
2.19 %
388
2018
United States
511.1
2.744 %
1,586.35
2016
Japan
165.7
3.147 %
1,297.39
2016
Germany
118.8
2.94 %
1,450.17
2016
South Korea
91.6
4.292 %
1,518.47
2014
India
66.5
0.85 %
39.37
2015
Brazil
60.0
2.256 %
905.8
2014
United Kingdom
44.8
1.701 %
692.9
2014
Russia
42.6
1.187 %
290.21
2014
France
38.4
1.17 %
177.89
2012

Observem o tamanho desses números. Pode haver dúvidas sobre a importância de um mercado anual de 550 bilhões de dólares na China, e de 511 bilhões de dólares nos EUA? E no Brasil, um setor que movimenta 60 bilhões de dólares por ano pode ser desconsiderado e desprezado? Para efeito de comparação, considerando o dólar a 4 reais, e comparando com o PIB dos estados do Brasil, a Ciência seria o oitavo PIB do Brasil empatado com o Distrito Federal. Ou seja, o investimento em Ciência no Brasil é maior do que o PIB de 19 Estados brasileiros. O agronegócio, setor cantado e decantado como uma das glórias nacionais (e é mesmo), gerou cerca de 420 bilhões de reais em 2018. Ou seja, se tomarmos o valor de 2016 em reais (240 bilhões), o investimento em pesquisa é da mesma ordem do valor gerado pelo agronegócio. Por que um desses setores tem tanto prestígio e o outro é sumamente ignorado? 

O mais curioso desses números é que eles apenas refletem a já ressaltada capilaridade do setor de pesquisa. Há uma simplificação na representação da pesquisa que é absolutamente deletéria para o país. A visão do pesquisador, cientista que vive enclausurado no laboratório da universidade, é absolutamente enganosa. Toda empresa faz pesquisa científica e desenvolve tecnologia à sua maneira, em maior ou menor escala. Ou alguém acha que quando uma empresa quer lançar um produto, ou reduzir custos, ou ajustar seu desempenho ao dos concorrentes, consulta o horóscopo ou as cartas de tarô? O que se faz é pesquisa de mercado, melhoramento de produtos e de processos, atividades que são fundamentalmente de pesquisa científica e multidisciplinar.

Além disso, há a questão do potencial do mercado no nível mundial, e do papel que a ciência poderia ter no desenvolvimento e na captação de investimentos para o país. Repetindo os números, apenas China e EUA investem mais de 1 TRILHÃO de dólares em pesquisa POR ANO. Quanto desse investimento poderia ser feito em pesquisas realizadas em colaboração com o Brasil? Por que esse potencial não é explorado? O Brasil tem excelentes cientistas, universidades de ponta, baixo custo de mão de obra local. Sempre é bom lembrar, a maioria das perguntas científicas são simplesmente universais. Não é à toa que já na primeira metade do século passado o grande Szent-Gyorgi já dizia ¨sinto-me mais próximo de um professor chinês do que do leiteiro da minha rua¨. É verdade que há questões de soberania nacional envolvidas, mas simplesmente não faz sentido que a nossa pesquisa não seja usada como um motor para a captação de investimentos em nível global, como política majoritária de Estado.

Também destaco o papel econômico direto na geração de empregos, que poderia ser fundamental na redução de desigualdades. Um governo que paga 600 reais para as famílias em situação de emergência, por que cria tantas dificuldades para pagamento de bolsas de iniciação científica que valem apenas 400 reais? É óbvio que essas demandas não são conflitantes, mas por que não reduzir a miséria através do recrutamento dos jovens para a pesquisa? Imagino que sempre se pode argumentar meritocraticamente que nem todos os jovens estariam preparados para desenvolver bons projetos de pesquisa nas universidades, e que não haveria condições físicas (espaço, equipamentos, orientadores) para que todos seguissem um caminho mais acadêmico de formação. Que se invista então em bolsas de vocação científica no ensino médio! Que são inclusive bem mais baratas...a propósito, os alunos de ensino médio que recebemos na Fiocruz, ressalvadas as questões de acesso, biossegurança, entre outras, têm total capacidade de desenvolver estudos e pesquisas que, mesmo não tendo impacto mundial, são fundamentais para que mantenham o interesse nos estudos em alto nível. Toda escola deveria poder formar cientistas, disso não tenho a menor dúvida. Que se encontrem as soluções, em vez de ficarmos paralisados pelos problemas.

Vejamos novamente os números.  O Brasil tem cerca de 6 milhões de alunos matriculados no Ensino Médio. Se todos fizessem iniciação científica, teríamos um gasto de 2.4 bilhões por mês, 28.8 bilhões de reais por ano. Apenas este ano, já gastamos pelo menos 160 bilhões com o auxílio emergencial. Por mais que a iniciativa de colocar todos os alunos em um programa de formação de cientistas seja utópica, eu não encontro justificativa para que não tenhamos uma inundação de bolsas de formação científica para todos os alunos de baixa renda. Sem querer simplificar as questões, a cada dia que passa estou mais convencido de que um governo que não faz investimentos maciços em ciência não é apenas ignorante do ponto de vista científico, é ruim mesmo em economia de mercado. Temos o dever cívico de alertar nossas elites para o problema, para que possamos caminhar juntos na superação desse problema. 

Eu entendo que algumas das comparações acima parecem um pouco simplórias. Especialmente ao comparar um setor transversal como a ciência com valores gerados por outros tipos de entidades. Contudo, meu objetivo aqui é chamar a atenção para os conceitos, para as ordens de grandeza, assim como para as grandes idéias e tendências envolvidas. Seja como for, considerando o poder e o retorno que a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico têm demonstrado nos últimos duzentos anos, em todos os países do mundo, é obrigatório fazermos um movimento forte de apoio ao setor de pesquisa nacional. Com isso certamente teremos boas chances de solucionar, no longo prazo, o que poderia ser a última das nossas grandes crises, econômicas e sociais. Vamos em frente!










 






   

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