Lúcifer e as ciências humanas
Ao longo dos últimos meses, assistimos a um debate desigual, entre autoridades e especialistas, sobre o papel e o valor das ciências humanas no desenvolvimento do país, aonde percebe-se uma demonização desse tipo de conhecimento. Os diferentes setores da sociedade acompanham essa discussão da maneira que podem, construindo suas opiniões com base na sua intuição, conhecimento prévio e sugestões dos formadores de opinião que consideram relevantes.
Aqui nós poderíamos voltar a um
debate antigo como a própria história da Filosofia, que é a discussão entre
Sócrates e Meleto sobre o papel dos especialistas na sociedade, por mais
impopular que sejam suas opiniões. Deixarei isso para a curiosidade do leitor,
pois o que me chama a atenção nesse momento sobre os questionamentos realizados
é de natureza epistemológica. Antes de introduzir a questão, vou tentar descrever
algumas das conclusões precipitadas que vejo serem adotadas por importantes
autoridade e que acabam reverberando no público e na sociedade:
1. As Ciências Humanas são menos importantes para
o progresso do país do que as ciências exatas e biológicas, já que essas seriam
mais ¨tecnológicas¨ e, portanto, podem reverter em melhores ganhos econômicos
para a sociedade;
2. As
Ciências Humanas atualmente estão em um estado degenerado no país, tendo sido
tomadas de assalto por pessoas exclusivamente dedicadas a proselitismo político
de esquerda.
O surgimento dessas impressões
falaciosas, na minha opinião, só pode ser compreendido por uma falha epistemológica
comum, que é o desconhecimento correto da natureza e atuação das ciências
humanas. Será que os debatedores, tão preocupados com o assunto, têm um
conhecimento adequado do campo? Eu mesmo estou adotando uma postura arriscada,
pois não sou da área e me dirijo ao assunto como observador externo. Mas
consigo perceber algumas lacunas importantes no debate, que são essenciais para
que nossas autoridades não tomem rumos perigosos. Um teórico importantíssimo do
assunto é o Sociólogo Michel Foucault. Um de seus textos (1), hoje em dia já
clássico, faz a seguinte consideração sobre as Ciências Humanas:
¨As ciências humanas, com efeito,
endereçam-se ao homem, na medida em que ele vive, em que fala, em que produz. É
como ser vivo que ele cresce, que tem funções e necessidades, que vê abrir-se
um espaço cujas coordenadas móveis ele articula em si mesmo; de um modo geral,
sua existência corporal fá-lo entrecruzar-se, de parte a parte, com o ser vivo;
produzindo objetos e utensílios, trocando aquilo de que tem necessidade,
organizando toda uma rede de circulação ao longo da qual perpassa o que ele
pode consumir e em que ele próprio se acha definido como elemento de troca,
aparece ele em sua existência imediatamente imbricado com os outros; enfim,
porque tem uma linguagem, pode constituir para si todo um universo simbólico,
em cujo interior se relaciona com seu passado, com coisas, com outrem, a partir
do qual pode imediatamente construir alguma coisa com um saber (particularmente
esse saber que tem de si mesmo e do qual as ciências humanas desenham uma das
formas possíveis). Pode-se, portanto, fixar o lugar das ciências do homem nas
vizinhanças, nas fronteiras imediatas e em toda a extensão dessas ciências em
que se trata da vida, do trabalho e da linguagem.¨
Foucault também coloca que o que
define um campo do conhecimento como sendo de ¨Humanas¨ não é a sua
politização, mas sim a natureza da sua aproximação ao sujeito e aos fatos
estudados, que muitas vezes não podem ser sujeitos de experimentação, além de
ter um caráter eminentemente histórico. Ou seja, não é possível restringir as Ciências
Humanas nem por um critério de ¨subjetividade¨ ou pelo uso de ferramentas de
análise ¨pouco matemáticas¨. Quem faz isso desconhece as análises estatísticas
que são muitas vezes necessárias para os estudos educacionais ou mesmo os cuidados
que são necessários para que se faça uma análise linguística que considere o
viés do observador. O campo das Ciências Humanas é, historicamente e naturalmente,
muito próximo e entrelaçado aos estudos biológicos e sociais aplicados, como o
direito, economia e a administração.
Se formos adotar uma visão mais
¨objetiva¨, ou mesmo burocrática, o próprio governo brasileiro circunscreve as
Humanidades a um campo diverso de especialidades, e muito próximas, por exemplo,
de áreas como Economia, Direito, Sociologia (2). E eu não posso deixar de ficar
surpreso quando tenho a impressão de que o debate, ingenuamente, simplifica as
humanidades aos estudos ¨puros¨ e isolados de História e Filosofia, que
certamente não são menos importantes. Mas o erro epistemológico é grosseiro,
especialmente quando realizado por autoridades governamentais que se propõe a
fazer uma análise mais ¨dura¨ e ¨concreta¨ dos fatos, priorizando áreas do
conhecimento que tenham resultados mais ¨práticos¨ para a sociedade.
Nesse sentido, podem-se fazer
algumas perguntas que, a princípio, parecem bastante ingênuas, mas cuja
resposta não é trivial e pode ter consequências enormes para o debate:
1. Qual é a natureza dos grandes problemas
e crises nacionais das últimas décadas? Tratam-se de problemas exclusivamente
tecnológicos?
2. Esses problemas serão
resolvidos investindo mais ou menos nas áreas estrategicamente relevantes?
A minha impressão, para a
primeira pergunta, traz a visão de alguém que trabalha por mais de 20 anos em
uma área bastante tecnológica, que é a de Bioquímica e desenvolvimento de
inseticidas. E, embora não tenha um conhecimento profundo de outras áreas,
reconheço que os grandes problemas nacionais não me parecem nem um pouco ¨tecnológicos¨.
O Brasil passa nos últimos anos (e talvez décadas) por problemas que são
sociais, econômicos, políticos, legais e institucionais. Todos extremamente relacionados
às Ciências Humanas! Ou alguém acha que quem vai resolver os problemas em
Economia são os Engenheiros, em vez de Economistas? E os problemas Sociais,
serão resolvidos pelos Médicos, em vez dos Sociólogos? E as questões Jurídicas,
serão resolvidas pelos Dentistas? E todas essas áreas acima necessitam de
formação sólida em História, Política, Filosofia, entre outros conhecimentos, senão
temos profissionais capengas que não estão à altura dos problemas do país.
É possível que nosso país se
encontre preso em círculos viciosos sem solução justamente pela ausência de
bons profissionais nessas áreas. Quando me refiro a bons profissionais, penso
em dois fatores de excelência: massa crítica e reconhecimento internacional. Na
minha área, às vezes coloca-se a discussão de por que o Brasil não ganha um
prêmio Nobel em Fisiologia e Medicina. Essa discussão nem parece existir no
campo da Economia, por exemplo. No campo do direito, também tenho a impressão
de que o Brasil não é nenhuma potência mundial. Posso estar enganado, mas seja
como for, isso me remete à segunda pergunta: independente de quão excelsas
sejam nossas comunidades acadêmicas nesses assuntos, não iremos resolver
questões sociais, políticas, econômicas ou legais investindo menos nessas áreas
e nas áreas transversais e naturalmente correlatas. Isso beira a estupidez.
Dessa forma, é com muita
preocupação que vejo o caminho político de desprestígio para campos tão
importantes do conhecimento e de formação de profissionais. A experiência internacional
aponta na direção contrária. As grandes economias do mundo se caracterizam por
um grande número de economistas, cientistas políticos, sociais e grandes
juristas que debatem incessantemente os caminhos de cada país e ajudam a sociedade
e as autoridades a tomar as melhores decisões.
Eu gostaria de terminar esse
texto com um depoimento de natureza pessoal. Quando eu era um adolescente, tentando
escolher um caminho e uma profissão, queria mudar o mundo e melhorar o país, como
praticamente todos os jovens de qualquer geração. Estava extremamente indeciso,
entre praticamente qualquer carreira. E, num turbilhão de impressões e
novidades da época, caí na esparrela de achar que apenas o conhecimento científico
e tecnologia poderiam transformar a sociedade para melhor. Decidi pela Biologia,
inspirado pelos avanços da genética molecular e da biotecnologia.
Não me arrependo um segundo dessa
decisão, dada a grande felicidade e realização que a carreira de biólogo me
trouxe. Mas qual não foi minha surpresa ao perceber que as grandes soluções para
os problemas do país não eram tecnológicas. Os maiores problemas do país são
políticos e sociais. A ciência, especialmente as biológicas e exatas, tem um papel
enorme no nosso desenvolvimento, mas isso depende de boas decisões justamente
no campo das ciências humanas, que são as que definem as grandes políticas, os
campos conceituais e de regulação aos que todos nós, seres humanos, estamos
submetidos. Vejam por exemplo o campo da Ética, fundamental e transversal, cujo
desconhecimento em certos setores da sociedade causa tantos problemas e tanta
confusão. Afinal de contas, fazer ciência é uma atividade humana, a serviço de
seres humanos. Alguém tem alguma dúvida disso?
(1) Foucault,
Michel. As Palavras e as Coisas. Uma arqueologia das Ciências Humanas. Ed.
Martins Fontes, 1999. 8º Ed.
(2)
Tabela de Áreas do Conhecimento. CNPq. In: http://www.cnpq.br/documents/10157/186158/TabeladeAreasdoConhecimento.pdf
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