A Paciência e a Importância - parte 2

Há algum tempo fiz uma pequena reflexão sobre um texto de Santo Agostinho, a respeito da questão da repetição e da novidade nas discussões filosóficas e científicas. O que me havia chamado a atenção, no debate de Agostinho (no livro Contra os Acadêmicos), era que aonde a maioria de nós vê um problema, na repetição de um tema, ele via qualidade, que seria o destaque ou realce de algo fundamentalmente importante. Ou seja, em vez de ver a repetição como um fruto tedioso de pobreza da discussão, ele a via como resultado da riqueza ou significância do tema em questão.

Em ciência isso é visível e patente em diferentes níveis. A repetição, ou reprodução, é um dos pilares da ciência. Essa é uma das razões subjacentes pelas quais a carreira científica é tão difícil, aonde é necessária uma combinação rara de brilho e disciplina. Mas isso é assunto para outro dia. A questão é que a reprodutibilidade é um valor básico do fazer científico. É pela repetição que se atesta a verdade, a confiabilidade e a relevância do conhecimento produzido.

Um nível básico de repetição é o da réplica experimental. Imaginemos que um cientista está fazendo um experimento no laboratório, uma medida simples. É comum fazer duas, três ou mais medidas em paralelo da mesma coisa, apenas para se certificar que aquele parâmetro está sendo bem medido, com precisão e descartando possíveis erros experimentais. Réplicas experimentais aumentam o trabalho, mas dão qualidade ao resultado.

Tendo obtido uma boa medida, é importante saber se essa medida se repete em outros indivíduos do mesmo sistema ou da mesma espécie. Em biologia, por exemplo, a variação individual é enorme, e o que se observa em um indivíduo pode ser diferente em outro. É comum realizar a mesma medida em dezenas, centenas, milhares de indivíduos. Réplicas individuais restringem os modelos, ou nos obrigam a pensar em modelos experimentais melhores ou mais acessíveis.

Um próximo nível de repetição é o da réplica experimental. Tendo feito a medida no grupo de indivíduos considerados, com o número adequado de réplicas, seria possível obter o mesmo resultado novamente em outra ocasião? Ou aquele resultado foi fortuito, dependente de algo que não estava adequadamente controlado ou considerado? Réplicas experimentais requerem tempo e paciência, mas nos dão a confiança nos dados para dizer que aquilo está acontecendo com certa consistência. A maioria dos estudos científicos exige esse nível de repetição.

Em alguns casos, o que se troca na réplica, seja ela uma réplica da medida ou de um experimento inteiro, é o cientista em si. Isso é importante quando as medidas envolvem julgamentos humanos, escolhas ou habilidade pessoal. Isso nos dá segurança de que os resultados não foram alterados por algum viés pessoal e foram obtidos com objetividade. Mas isso requer uma equipe grande de técnicos qualificados.

Um tipo de repetição menos comum é a repetição do experimento por outro grupo de pesquisa. Esse tipo de repetição costuma ser interpretada como a validação definitiva do conhecimento e é chamada de estudo de replicação. Infelizmente, esse nível de confirmação é muito pouco realizado ou valorizado. Uma das causas disso é que uma parte importante do conhecimento científico tem como objetos realidades de natureza local ou regional, sendo inacessíveis para outros grupos de pesquisa. Outro fator é a falta de massa crítica, em termos de comunidades de pesquisadores, que possam realizar uma repetição com a mesma competência e atributos técnicos. E uma razão adicional é a pressão constante feita sobre a comunidade acadêmica em relação a descobertas novas, manchetes de jornal ou despertar do público geral.

Uma consequência danosa desses fatos é que a maioria do conhecimento científico obtido até hoje nunca foi confirmado independentemente. É pouco provável que isso signifique que ele não seja válido, mas às vezes, dependendo do campo de pesquisa, tem-se a sensação de caminhar sobre areia movediça. Um esforço nesse sentido é a realização de revisões bibliográficas, aonde os cientistas revisitam suas fontes e idéias, e podem rediscutir suas limitações. Infelizmente, às vezes essas revisões são realizadas mais com o intuito de aumentar o rol de publicações de um cientista do que com o intuito honesto de atualizar um campo de pesquisa.

Outra consequência interessante desses fatos é que o nível de repetição acaba por refletir o interesse ou a importância que o ser humano como um todo dá a um certo campo do conhecimento. Se formos fazer um histórico limitado, apenas estudos muito revolucionários, num sentido muito amplo, ou muito conectados a um interesse imediato da sociedade, acabam por receber o nível de atenção suficiente para que existam diferentes grupos de pesquisa no mundo que aceitem debruçar-se novamente sobre experimentos já realizados. No campo da biologia, coisas como células-tronco, implantes neurais ou terapias contra o câncer, por exemplo. Infelizmente, um número infinito de temas, como a classificação de besouros ou a digestão das minhocas, que são extremamente interessantes para os especialistas (que dedicaram suas vidas a eles), não recebem o mesmo nível de atenção. E isso nos diz muito sobre os caminhos do ser humano. A repetição, em última análise, é um diagnóstico da importância que damos aos temas, e a falta dela nos mostra a limitação e pobreza do nosso pensar como comunidade. 







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