Os donos do mosquito - parte 2
O hábito de acreditar que existe
uma única solução mágica para o controle de vetores é antigo, e tem
profundas razões históricas. Insetos povoam o imaginário de nossa cultura desde
que surgimos como civilizações, e isso tem uma raiz prática inquestionável -
não é mera coincidência que das dez pragas bíblicas que assolaram o Egito, nada
menos que TRÊS são insetos - piolhos, moscas e gafanhotos!
Imagine-se a revolução quando o
DDT começou a ser usado nas campanhas militares durante a segunda guerra
mundial. O tifo, ou febre tifóide, doença mortífera transmitida por pulgas,
sempre foi um dos maiores problemas dos exércitos durante a guerra - com mais
de dez milhões de mortes apenas na Rússia, durante a primeira guerra mundial.
Para se ter uma idéia do custo que essas doenças causavam aos países, o Japão passou
a criar pulgas infectadas com peste negra - isso mesmo - para usar como arma
biológica.
O DDT é um inseticida
fantástico. Age em pequenas concentrações no sistema nervoso dos insetos,
causando convulsões e morte. Atua por contato e tem uma estabilidade nas
superfícies após ser borrifado que é impressionante. Ele foi usado para
controle de todo tipo de pragas agrícolas e vetores de doenças até a década de
70, quando comecaram-se a perceber alguns problemas que o uso indiscriminado de
inseticidas poderia causar.
O primeiro tipo de impacto
ambiental do uso indiscriminado de inseticidas como o DDT foi percebido apenas
cerca de 20 anos após a disseminação do seu uso. As consequências do uso de
inseticidas em larga escala foi denunciada em nível mundial inicialmente pela
ambientalista Rachel Carson nos Estados Unidos, através do livro A Primavera
Silenciosa. As consequências ambientais do uso de inseticidas se revelam de
diferentes maneiras. A primeira, mais óbvia, é a morte não seletiva de toda
espécie de inseto que entre em contato com o princípio ativo. Assim, uma
aplicação que pretenda controlar a lagarta do milho numa plantação irá
exterminar moscas, besouros, borboletas, vespas e abelhas em todas as
imediações do sítio da aplicação. Inseticidas químicos são por natureza não
seletivos, e a morte generalizada de insetos tem consequências ecológicas
desastrosas. Insetos são presas, ou alimento, de outros animais como pássaros,
anfíbios e répteis, e são responsáveis pela polinização de um número enorme de
plantas com flores. Assim sendo, o extermínio de insetos sem controle costuma
causar a morte a longo prazo de quase todo tipo de planta e animal na natureza,
incluindo os seres humanos.
A segunda consequência
ambiental do uso contínuo de inseticidas é mais difícil de perceber, e está
relacionada ao acúmulo dessas moléculas no meio. Muitos desses compostos não
são biodegradáveis, ou tem uma meia vida longa, que pode variar de anos a
décadas. Dessa maneira, esses compostos químicos se acumulam nos animais, especialmente
nos que ingerem insetos, assim como no solo, água e nas plantas de vida longa.
Embora a toxicidade da maioria dos inseticidas seja pequena para mamíferos, um
acúmulo continuado desses compostos do ambiente tem sem dúvida consequências
para saúde animal e para a saúde humana. Por exemplo, a dose letal do DDT por
via oral em humanos é de 500 mg/kg, o que significa que uma pessoa de cerca de
70 quilos precisa ingerir 35 gramas do composto para morrer. Além disso, o DDT
é considerado um carcinogênico, ou seja, a exposição a longo prazo aumenta o
risco de câncer. É por isso que todos os países, especialmente na América do
Norte e na Europa, têm regulações e um cuidado muito grande com aplicação
desses compostos no controle de pragas e vetores. No caso do controle de
vetores o cuidado é ainda maior, porque estamos lidando com insetos que estão
intimamente associados ou próximos às populações humanas.
A terceira consequência do uso
indiscriminado de inseticidas químicos é bem mais difícil de detectar, tendo
sido percebida com mais freqûëncia apenas a partir da década de 70 e 80.
Trata-se da resistência a inseticidas, que surgiu em praticamente todas as
populações de pragas agrícolas e vetores de doenças cujo controle foi tentado
na base de inseticidas químicos. O princípio da resistência é muito simples.
Imaginemos que tentamos controlar a população de mosquitos em uma cidade com
uma aplicação pesada de determinado inseticida, e apenas um casal de mosquitos
sobreviveu. Esse casal de mosquitos será o único a produir ovos para a próxima
geração. Como a resistência a inseticidas é herdada geneticamente, na cidade
agora teremos apenas mosquitos resistentes, sobre os quais o inseticida não tem
nenhum efeito. Esse tipo de fenômeno, prova viva e cabal da teoria da evolução
das espécies, vem acontecendo no Brasil rotineiramente, todos os anos.
Atualmente sabemos que temos populações de mosquitos da dengue resistentes a
praticamente todos os inseticidas disponíveis, e que esse mosquitos resistentes
estão em praticamente todos os estados do país. É por isso, por causa da
evolução dos mosquitos, que o Ministério da Saúde é obrigado a trocar de
inseticida nas campanhas de controle de tempos em tempos. Assim, da próxima vez
em que o leitor presenciar um debate acalorado sobre a teoria da evolução,
basta apenas lembrar dos mosquitos e muriçocas que nos incomodam noite e dia...
Dessa maneira, é importante
sempre ter em mente as limitações e os problemas de concentrar o controle de
vetores apenas no uso de inseticidas químicos. Esses compostos são extremamente
valiosos, e foram responsáveis por salvar a vida de milhões, talvez bilhões de
seres humanos ao longo do século XX. Apostar unicamente nessa ferramenta
significa justamente desperdiçá-la, fazendo com que as consequências do seu uso
pesem mais na balança do que os benefícios. Esse é um debate muito complicado,
porque o mercado de inseticidas movimenta bilhões de dólares no Brasil e no
mundo, e culturalmente as pessoas estão acostumadas a fazer uso de inseticidas
e a ver como resultado a morte rápida do inseto que as incomoda. Um exemplo
disso é a presença de inseticidas a base de piretróides em praticamente todos
os lares brasileiros, seja para matar baratas, mosquitos ou formigas. Só não
está na cesta básica por uma questão de economia.
Concluindo, embora a indústria
de inseticidas tenha sido a dona dos mosquitos por quase 80 anos, precisamos
repensar essa estratégia e desenvolver cada vez mais o manejo integrado de
vetores. Nas próximas postagens pretendo comentar estratégias alternativas, que
devem complementar o uso de inseticidas, ou até substituí-lo, mas que da mesma
forma não devem advogar o papel de solução única e exclusiva. Espero que tenham
gostado até a próxima!
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